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    Proposta da ANP para gás de cozinha acende alerta sobre segurança

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    Presente em 100% dos municípios brasileiros e em 91% dos lares, o Gás Liquefeito de Petróleo (GLP), popularmente conhecido como gás de cozinha, é um dos insumos energéticos mais relevantes para a população. Versátil, portátil e seguro, ele garante abastecimento até mesmo em áreas remotas sem acesso à energia elétrica ou saneamento.

    Apesar da importância, o setor vive um momento de atenção. A Análise de Impacto Regulatório (AIR), conduzida pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), tem colocado o GLP no centro da discussão sobre acesso à energia, segurança, fiscalização e viabilidade econômica.

    Especialistas alertam que as mudanças propostas podem comprometer uma cadeia produtiva que emprega 330 mil pessoas e garante, com segurança e pontualidade, a entrega de um botijão de gás a cada 13 segundos em todo o país.

    A regulação brasileira é reconhecida internacionalmente como referência ao estabelecer incentivos econômico-regulatórios à manutenção, requalificação e assistência técnica pelas distribuidoras sobre o parque de botijões.

    Hoje, cada botijão tem a marca da distribuidora gravada em alto-relevo, que identifica a empresa responsável. O enchimento ocorre em grandes plantas industriais, com rigor técnico, segurança e ganhos de escala.

    Além disso, as distribuidoras só podem comercializar GLP em botijões da própria marca, o que assegura rastreabilidade, responsabilidade legal e fiscalização efetiva. Trata-se de um sistema sólido, seguro e eficiente, muito bem estruturado e que cobre todo o território nacional promovendo bem-estar.

    A proposta da ANP, porém, rompe profundamente com esse modelo. O texto propõe que qualquer distribuidora poderá comercializar botijões de outras marcas mediante um sistema de rastreamento cuja confiabilidade ainda não foi testada e a viabilidade nos mais de 80 milhões de botijões fabricados antes de 2005 sem número de série é inexequível.

    A nova regra proposta também aceita que o enchimento seja feito em pequenas instalações, até em áreas urbanas e de forma fracionada. A consequência, na visão de especialistas, como o Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Gás Liquefeito de Petróleo, o Sindigás, pode ser desastrosa. A população estará exposta a fraudes, insegurança e riscos de acidentes.

    “O agente regulador tem esse papel de propor novas regras e olhar o mercado, sugerindo melhorias. Respeitamos isso e apoiamos. Porém, esta proposta de mudança regulatória do GLP não contém cálculo dos impactos econômicos e sociais das medidas apresentadas. Não quantifica, por exemplo, os custos adicionais que haveria com este sistema de rastreamento nem com a necessidade de maior equipe e infraestrutura de fiscalização.” 

    Sergio Bandeira de Mello, presidente do Sindigás

    Pesquisa aponta que 9 em cada 10 brasileiros veem a marca no botijão como garantia de segurança

    Uma pesquisa do Instituto Locomotiva feita com 1.500 brasileiros em todas as regiões do país no período de 5 a 9 de junho de 2025 confirma que a população rejeita as mudanças propostas e teme pela segurança. Os resultados são claros:

    • 93% da população (cerca de 158 milhões de brasileiros maiores de 18 anos) temem comprar gás sem a garantia da marca conhecida.
    • 97% acreditam que a marca no botijão é fundamental para garantir a qualidade do gás.
    • 94% consideram importante ter o nome da empresa que encheu o botijão gravado em alto-relevo, assegurando rastreabilidade.
    • 83% defendem a regra atual de que só a empresa com marca gravada pode encher o botijão, para que sejam fiscalizadas e responsabilizadas em caso de acidentes.

    “A população sabe que um botijão mal conservado pode colocar vidas em risco. Além disso, há uma percepção de que, sem a marca da empresa gravada no botijão, fica difícil saber a procedência e quem se responsabiliza por ele. Isso sem contar que a chance de adulteração ou de receber menos gás do que comprou é muito grande”, explica Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva. “A pesquisa mostrou que o brasileiro valoriza políticas públicas que ampliem o acesso ao gás, sim, mas sem abrir mão da segurança.”

    O setor de GLP exige altos investimentos, rigor em segurança e logística pesada, sendo dever regulatório assegurar agentes com qualificação técnica e capacidade sustentável para responder aos elevados parâmetros de segurança e qualidade.

    O sistema atual protege o consumidor e dá confiança ao mercado. Afinal, estamos falando de um produto inflamável e volátil. Hoje, o enchimento dos botijões é feito em grandes bases industriais, com estrutura e equipes de emergência. Improvisar seria inseguro e, no fim, até mais caro. Agentes do mercado costumam dizer que “com GLP não se brinca”.

    Outro ponto que gera dúvidas entre os especialistas: como garantir que o consumidor receba exatamente o que pagou? Sem a pré-medida de até 13 quilos, o consumidor não tem garantia exata do que recebeu. O risco é trazer para o mercado de GLP problemas que hoje existem em outros mercados, como adulteração e precarização, dificultando a fiscalização que, para o tamanho do país, é uma tarefa complexa e custosa.

    “Quando você afrouxa regras, abre espaço para o crime ou, no mínimo, para a negligência com a segurança. Esse alerta vem da própria população, que teme que o gás vire moeda de troca em regiões onde o Estado é ausente. No Paraguai, por exemplo, estima-se que 80% do parque de botijões está com prazo de requalificação vencido. No México, há roubos de produto, botijões enchidos com desvio de quantidade. A proliferação destes agentes é tanta que os órgãos reguladores não têm capacidade de fiscalizar.”

    Sergio Bandeira de Mello, presidente do Sindigás

    Para o Sindigás, o debate sobre a regulação é sempre válido e há um entendimento por parte da ANP de que falta competividade no mercado de GLP. Mas, em todo o mundo, trata-se de um mercado onde as empresas precisam fazer altos investimentos para entregar um combustível seguro em 100% dos municípios. O mesmo ocorre em países vizinhos como Chile, Colômbia e Uruguai.

    “Corremos o risco de mudar uma regra que funciona e dá segurança a todo o abastecimento de GLP no país e não conseguir benefícios reais em troca para o consumidor”, afirma Bandeira de Mello, que se preocupa que, no futuro, parte das empresas sérias acabe saindo do mercado e o mercado se desorganize.

    Gás do Povo vai gerar impacto real na vida de quem mais precisa, mas novas regras da ANP podem atrapalhar a compra de botijões necessários para o programa

    Se o objetivo da ANP e de todo o governo é ampliar o acesso ao produto, a melhor saída, na visão do Sindigás, não é mexer nas regras atuais, trazendo riscos e insegurança para o mercado. Mas, sim, direcionar os esforços para entregar o GLP a quem mais precisa.

    Por isso, o Sindigás apoia o programa Gás do Povo, cuja Medida Provisória foi anunciada dia 4 de setembro em Minas Gerais. Hoje, cerca de 23% das famílias brasileiras ainda utilizam lenha ou carvão para cozinhar, o que gera impactos sérios na saúde e no meio ambiente.

    O Sindigás vê no programa uma oportunidade histórica para levar o GLP às camadas mais vulneráveis da população e reduzir a pobreza energética.

    Estudos mostram que a queima de lenha emite 150 vezes mais CO₂ do que o GLP, além de causar doenças respiratórias em mulheres e crianças, principais grupos expostos à fumaça dentro de casa. A expectativa do Gás do Povo, segundo o governo federal, é atender cerca de 15 milhões de famílias de baixa renda cadastradas no CadÚnico, promovendo uma transição mais segura e sustentável.

    “As empresas associadas ao Sindigás e as 59 mil revendas espalhadas pelo país têm a experiência e a capilaridade necessárias para garantir que o programa seja eficaz. As empresas vão investir de R$ 1,5 bilhão a R$ 2,5 bilhões na compra de novos botijões necessários para atender a demanda do programa Gás do Povo”, ressalta Bandeira de Mello. “Mas, como vamos investir tanto se, a qualquer momento, a regra das marcas no botijão pode ser mudada? Quem vai cuidar de todo esse parque de botijões? O Brasil está começando um novo programa muito eficiente e, ao mesmo tempo, tem uma regra sendo discutida que vai na direção contraria. É preciso fazer uma escolha.”