Com 4.429 registros em 2024, São Paulo bateu o recorde histórico de internações por lesões autoprovocadas voluntariamente, que incluem as tentativas de suicídio, de acordo com dados do Departamento de Informação e Informática do Sistema Único de Saúde (DataSUS).
O crescimento de casos, em meio à campanha do Setembro Amarelo, acende um alerta para os cuidados com a saúde mental dos cidadãos, principalmente na faixa etária de 20 a 29 anos, que representam a maior parcela, somando 1.287.
Em comparação com 2008, quando os registros começaram a ser feitos, o estado teve um aumento de 97,3% nas internações. E os dados do DataSUS de 2025 preocupam ainda mais: só nos seis primeiros meses deste ano, a média foi de 12,7 casos por dia.
O Metrópoles conversou com a psicóloga Aline Wolff, especialista em Alto Desempenho, PhD e líder das ações de saúde mental do Comitê Olímpico Brasileiro (COB), sobre os índices recordistas.
Segundo a especialista, os dados revelam o quanto a preocupação com a saúde mental é urgente. Inclusive, para Aline, todas as gerações sofrem com essa questão. O que mudou, recentemente, foi a notificação dos casos.
“Temos uma geração mais jovem que está mais exposta a um mundo que mudou, que tem mais informação, mais velocidade, mais estímulo, mais comparação e mais pressão por performance, mas que também está mais consciente sobre a importância dos cuidados com a saúde mental e busca mais ajuda e é diagnosticado […] Tem um aumento da notificação porque o estigma relacionado à saúde mental, sem dúvida, diminuiu”, avaliou.
A psicóloga acredita que a faixa dos 20 a 29 anos – que teve o maior número de casos em 2024 – pode ser mais impactada pelos problemas de saúde mental por ser uma geração que está em fase de transição, naquele momento de “acontecer na vida”. “É muito comum pessoas com essa idade serem expostas a uma sociedade performática que, por causa das redes sociais, começa a se sentir atrasado na própria vida”, disse. Mas, para a especialista, o avanço da tecnologia não carrega toda a culpa.
“É uma pressão, é uma velocidade e é uma régua difícil de atingir. Muitas pessoas se perdem nessa velocidade, buscando uma coisa que, às vezes, nem é o que elas querem de fato”, completou.
Para o professor e doutor Sergio Tamai, diretor da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), a tendência no aumento dos casos de tentativas de suicídio e lesões autoprovocadas vem sendo notada nos últimos 5 anos, principalmente entre os mais jovens, de 15 a 30 anos, e mais especificamente, entre 15 e 19 anos. Houve uma elevação de mais de 20% em média desde a pandemia da Covid-19. O especialista avalia que, entre as causas, é possível elencar o aumento dos casos de transtornos mentais na população e do uso de drogas pelos jovens.
Saúde mental dos mais velhos
Apesar de a tecnologia, as redes sociais, o “imediatismo” e o foco na performance afetarem muito os jovens, os fatores não se limitam aos mais novos. Os dados do DataSUS também revelam o aumento dos registros de tentativas de suicídio entre os brasileiros na faixa etária de 70 a 79 anos.
Aline Wolff aponta que as pessoas mais velhas também estão em fase de transição, que é quando começam os processos de aposentadoria e a mudança de identidade, além do processo de envelhecimento. Isso, somado à exposição das mudanças do mundo, está longe de ser problematizado como deveria, na opinião da especialista. O alerta para esta faixa etária é grande, em especial por ser tratada como “não importante” — já que, para a sociedade, eles “não produzem mais”.
Sergio Tamai atribui o aumento dos casos a crises financeiras, perda da independência financeira, mudanças abruptas nas condições de vida (moradia, dependência) ou até no abuso do álcool. Para ele, tanto a faixa etária dos 20 a 29 quanto a dos 70 a 79 são as mais vulneráveis aos estressores psicossociais e as que menos têm acesso ao atendimento em saúde mental.
Fundado em São Paulo em 1962, o Centro de Valorização da Vida (CVV) é um serviço voluntário gratuito de apoio emocional e prevenção do suicídio para todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo e anonimato. Em 2024, quando o estado bateu o recorde histórico, foram oferecidos, em todo o Brasil, 2,7 milhões de apoios. O Metrópoles conversou com o voluntário Carlos Correia, que explicou que, às vezes, as pessoas ligam apenas para serem ouvidas.
“Por exemplo, uma pessoa idosa, que mora sozinha, pode querer apenas um ‘boa noite’ de alguém vivo, de um ser humano. Às vezes, ela está tão isolada, que sente falta disso. Não é porque ela não tem um amigo ou um parente, mas ela pode sentir que está incomodando”, falou.
Geração mais triste
Com relatos crescentes de ansiedade, depressão e angústia, a Geração Z, composta por nascidos entre 1997 e 2012, é considerada a mais triste. Aline Wolff explica que há, entre eles, uma maior conscientização e busca por ajuda, mas, ao mesmo tempo, são os que estão expostos ao mundo com muito mais estressores do que as gerações anteriores. E isso deve ser levado em consideração na hora de avaliar o aumento dos casos.
“Existe um discurso das gerações anteriores invalidando esse movimento da Geração Z, como se buscar o cuidado fosse fragilizar mais. E eu vejo jovens que escutam isso dos seus pais e reproduzem essa ideia, de que não precisa de terapia, que é coisa de quem é fraco”, contou a psicóloga.
Leia também
-
Setembro amarelo: como a depressão afeta a saúde mental dos idosos
-
Diagnóstico de TDAH entre famosos acende debate sobre saúde mental
-
Dieta mediterrânea é aliada da saúde mental, aponta estudo brasileiro
-
Saúde mental: 6 alimentos que ajudam a combater a ansiedade
Sérgio Tamai avalia que há maior vulnerabilidade entre jovens e adolescentes a fatores psicossociais modernos, como a pressão por desempenho escolar e profissional, a sobrecarga emocional, o uso intensivo das redes sociais, o isolamento e ansiedade generalizada. Além disso, a avaliação e os diagnósticos de transtornos mentais são menos frequentes nos adolescentes do que em adultos.
Inteligência artificial e redes sociais
Com o surgimento de casos de jovens que estão tirando a própria vidas após conversas com programas de inteligência artificial, Aline destacou o empobrecimento crescente das conexões humanas.
“Eu acho que todo o crescimento do uso de IAs como recurso terapêutico é um sintoma da solidão dos nossos tempos, porque está difícil se conectar com outro ser humano. Quando as pessoas começam a pedir ajuda para uma base de dados, isso revela muito sobre como a gente está perdendo essa humanidade e as conexões”, avaliou.
O risco dessa perda de conexões, para ela, está relacionado ao aspecto da regulação das emoções. “Como uma base de dados vai ajudar uma pessoa? Com informações. Mas o que mais regula as emoções são os afetos. E os afetos nunca serão possíveis de serem vividos e sentidos por palavras”, falou.
A psicóloga reitera que inteligências artificiais nunca iriam conseguir impedir que uma pessoa tire a própria vida, por não terem recursos para isso. Quem tem o recurso, na realidade, são os profissionais que são treinados para isso e possuem a capacidade de se conectarem com a pessoa que está passando por problemas de saúde mental.
Carlos Correia, do CVV, também falou sobre o papel da inteligência artificial na busca por ajuda. Para ele, nada pode substituir uma conversa acolhedora e empática entre duas pessoas, porque “ao ouvir o outro, eu tenho que ter a sensibilidade de ouvir um choro, uma pausa, uma reticência ali ou algo contraditório”, que é algo que as plataformas não conseguem fazer.
“A ideia não é ficar mexendo na ferida da pessoa e nem ficar transmitindo palavras de que ‘a vida é bela’. A ideia é ouvir a pessoa na sua dor. A proposta do CVV não é falar mais do que o outro, é ouvir o outro. Não deixar de falar, mas falar no sentido de criar um ambiente favorável para que o outro fale”, explicou Correia.
Na conversa com a reportagem, Correia ressaltou que o intuito de um voluntário do CVV não é ficar falando o que o outro quer ouvir. A intenção de alguém que ajude um pessoa em necessidade não deve ser como a inteligência artificial faz, que é se moldar de um jeito “doce e suave”, que não desagrada o interlocutor.
“A gente ouve a pessoa e procura fazer uma relação que envolva sentimentos em que o outro externe o que ele sente, por estar passando por aquilo. Ele nos conta um problema, aí a gente vai conversar com ele com o foco maior em ele abordar o problema e externar o que sente diante daquilo que está passando, sem ser um saca-rolhas. Eu [como voluntário do CVV] não sou um saca-rolhas, eu sou uma pessoa que vai permitir que o outro fale ou não fale”, disse.
Esta ideia da conexão entre duas pessoas – que é impossibilitada pela inteligência artificial – anda ao lado da campanha de Setembro Amarelo deste ano do CVV. Com o tema “Conversar pode mudar vidas”, o centro tenta reforçar que o diálogo é uma ferramenta poderosa para acolher quem sofre em silêncio.
Para além do Setembro Amarelo
Aline Wolff acredita no poder das políticas públicas para que os números diminuam. Para ela, além de só fazer campanhas, como a do Setembro Amarelo, é importante pensar em como endereçar as medidas para que as pessoas se conectem mais e busquem conversar umas com as outras e não com máquinas.
“Eu acho que as redes sociais, como absolutamente tudo, podem ser usadas para o bem. É sobre ter consciência daquilo. É um espaço que precisa ser ocupado com as melhores mensagens”, opinou a especialista.
Em 2024, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) lançou, na campanha de Setembro Amarelo, uma cartilha para influenciadores digitais, com orientações sobre como abordar temas de saúde mental e prevenção ao suicídio de forma responsável.
“A ABP enfatiza a importância de se combater o estigma em relação à doença mental e de se procurar ajuda de um profissional de saúde mental”, explicou Tamai. Segundo ele, a cartilha destaca que informações equivocadas ou a romantização do sofrimento podem causar danos irreversíveis.
O diretor da ABP acredita que a reversão da tendência de elevação no número de tentativas de suicídio só ocorrerá com o fim do estigma em relação à doença mental e a melhora do acesso à avaliação e tratamento adequado através de políticas públicas embasadas em evidências científicas.
Atendimento psicológico na rede pública de saúde
Em nota ao Metrópoles, a Secretaria de Estado da Saúde informou que a porta de entrada para o atendimento psicológico pelo SUS é feita na Atenção Básica, por meio da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) e das Unidades Básicas de Saúde (UBSs), que são administradas pelos municípios.
A pasta esclareceu que a atual gestão criou a Tabela SUS Paulista, “que tem como objetivo aumentar o atendimento na rede pública de saúde e reduzir as filas, por meio do complemento do valor que os hospitais filantrópicos recebem atualmente do Ministério da Saúde”. Mais de R$ 6,7 bilhões foram repassados para 800 instituições, disse a secretaria.
Em 2024, segundo a pasta, os tratamentos clínicos em saúde mental tiveram um aumento de 12% em comparação com 2022, por meio da Tabela SUS Paulista.
“É importante ressaltar que os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) podem ser procurados para avaliação e acompanhamento, quando necessário. Entretanto, desde as UBSs, até a urgência/emergência nos hospitais gerais possuem condições para atendimento e o devido encaminhamento para especialistas da rede”, diz a nota. “Quando há necessidade de cuidados de alta complexidade em hospital de referência, o paciente é encaminhado conforme quadro clínico.”
Busque ajuda
O Metrópoles tem a política de publicar informações sobre casos ou tentativas de suicídio que ocorrem em locais públicos ou causam mobilização social, porque esse é um tema debatido com muito cuidado pelas pessoas em geral. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que o assunto não venha a público com frequência, para o ato não ser estimulado.
O silêncio, porém, camufla outro problema: a falta de conhecimento sobre o que, de fato, leva essas pessoas a se matarem. Depressão, esquizofrenia e uso de drogas ilícitas são os principais males identificados pelos médicos em um potencial suicida – problemas que poderiam ser tratados e evitados em 90% dos casos, segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria.
Está passando por um período difícil? O Centro de Valorização da Vida (CVV) pode ajudar você. A organização atua no apoio emocional e na prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo, por telefone, e-mail, chat e Skype, 24 horas, todos os dias.