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    “USP não debate ideias no ritmo do TikTok”, diz diretor sobre ataques

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    A Universidade de São Paulo (USP) tem registrado, ao longo dos últimos meses, uma série de tumultos durante a visita de grupos conservadores à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH).

    O caso mais recente, no dia 5 de setembro, terminou com feridos: um estudante alega ter sido mordido e um professor convidado da instituição foi alvo de um soco. As confusões, em geral, acontecem quando os grupos de direita tentam gravar vídeos para as redes sociais.

    O diretor da FFLCH, Adrián Pablo Fanjul, diz que a USP decidiu entrar na Justiça contra algumas das pessoas que lideraram as incursões. Para ele, os grupos têm um modus operandi: provocar para gravar vídeos e fazer cortes “na velocidade do TikTok”.

    Em entrevista ao Metrópoles, ele diz que a universidade é um espaço para debates, mas não no ritmo das redes e aos gritos. “A universidade não trabalha em ‘debate tipo TikTok’. Uma aula universitária não pode ser uma ‘TikTok-aula’, em que um grita uma coisa, outro grita outra, como tentam ser os vídeos deles”.

    Leia abaixo a entrevista com o diretor:

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    A USP, e em especial a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), tem sido alvo de grupos que vão até a unidade para gravar vídeos, em geral, provocando estudantes. Esse movimento já foi feito pelo vereador Lucas Pavanato (PL) e também por outros nomes. O senhor tem uma estimativa de quantos casos desse tipo já foram registrados na FFLCH?

    Este ano, desde o dia 14 de maio, já tivemos oito incursões desse tipo. O vereador Lucas Pavanato esteve em apenas duas dessas oito. As outras foram outros grupos, menos conhecidos, mas [com pessoas] que estão lotados em gabinetes de deputados estaduais, apesar de não serem eles, individualmente, pessoas conhecidas.

    Às vezes é uma única pessoa, às vezes um grupo mais numeroso. De modo geral, o que todos procuram é gravar, sem consentimento, imagens de pessoas aqui na faculdade e provocá-las para que reajam.

    Agora, as técnicas são um pouco diferentes. Tem quem venha, por exemplo, com algum cartaz provocador, como “Bolsonaro é melhor que Lula, me mostre o contrário”, coloca uma mesa e começa a chamar as pessoas.

    Outra técnica, que é um pouco mais agressiva, é vir como se estivessem fazendo de conta que são um tipo de inspetor que vem cuidar para que não haja política na universidade. Eles arrancam faixas colocadas por coletivos, para que as pessoas do movimento estudantil reajam e, então, também tentam gravar vídeos.

    O paradoxal é que quando fazem esse tipo de arruaça, gritando que não pode haver política, eles estão “vestidos de política”. Eles vêm com camisetas dos grupos políticos dos quais participam, gritam coisas a favor de algum líder de extrema direita, como [Jair] Bolsonaro ou algum outro.

    E como a universidade tem lidado com esses casos? De que forma vocês encaram essas incursões?

    No primeiro dia fizemos um comunicado para todas as pessoas da faculdade explicando o que tinha acontecido. E, como pouco tempo antes tinha havido ataques semelhantes no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, nos reunimos com a direção do IFCH para nos inteirarmos de que medidas eles tinham tomado.

    Inspirados pela conversa na Unicamp, publicamos uma série de orientações para as pessoas da faculdade com indicações como: evitar confronto, chamar a guarda universitária, não se aproximar. A orientação é não responder às provocações e não entrar em contato físico. E imediatamente chamar a guarda universitária.

    Paralelamente, indicamos para as pessoas que eventualmente tivessem sido filmadas sem autorização, ou caluniadas, a fazer boletins de ocorrência, e acompanhamos elas à delegacia.

    Juntamos tudo isso num processo que foi levado à Procuradoria Geral da USP. Recentemente, a Procuradoria decidiu encaminhar uma ação civil contra algumas pessoas identificadas nessas ações violentas e a reitoria oficiou a Secretaria de Segurança Pública do Estado pedindo celeridade na apuração dos fatos denunciados nos vários boletins de ocorrência, que já são 5 ou 6.

    A direção fez uma reunião aberta na faculdade e decidiu fazer uma série de campanhas públicas, uma delas um grande ato em defesa da democracia na universidade e da faculdade, que vai ser no dia 2 de outubro. Estamos convidando setores acadêmicos, científicos, políticos, sociais, culturais, enfim, para uma grande ação já nesse plano.

    Por que o senhor acha que a USP e outras universidades públicas têm sido escolhidas por esses grupos que querem gravar vídeos confrontando ideias?

    Bom, em primeiro lugar, não é uma confrontação de ideias, não são pessoas que procuram nenhum tipo de debate. Elas procuram escândalo, confrontação física, para gravar imagens cortadas, montadas, para a propaganda política delas.

    Por que penso que acontece? Bom, tem dois fatores. Por um lado, porque há uma ideia preconceituosa, bastante consolidada no Brasil, de que a universidade pública seria um lugar de privilegiados. Muitas vezes essas pessoas, enquanto realizam essas ações, dizem que representam o povo, porque tudo isso seria mantido com dinheiro público.

    O problema é que isso bate com o fato de que as universidades públicas no Brasil estão cada vez mais inclusivas. Não são mais universidades de elite. Tanto que a maioria numérica dos estudantes da USP provém da escola pública.

    Para você ter uma ideia, aproximadamente 64% dos estudantes de graduação da USP vêm de famílias com renda familiar inferior a R$ 7 mil. Então, o povo está aqui, está nas universidades públicas.

    Esses setores trabalham para correntes neoliberais de extrema direita que pressionam para que a universidade pública tenha menos orçamento. É algo direcionado contra a universidade pública e contra a escola pública, por interesses econômicos. É uma tendência neoliberal de extrema direita que, não apenas no Brasil, tem como política o desmonte do Estado e o ataque a tudo aquilo que é propriedade pública. Bom, esse é um lado.

    Outro fator é que está havendo uma movimentação nas universidades de jovens que reagem e se manifestam contra processos de violência. Veja você como o governo Trump, quando assume o poder nos Estados Unidos, deflagra uma repressão violenta contra as universidades e contra os movimentos democráticos das universidades que, por exemplo, protestavam contra o genocídio na faixa de Gaza.

    Há toda uma tentativa de favorecer a pós-verdade, de favorecer a informação falsa, a desinformação, e a universidade é um perigo para isso, porque a universidade pratica a produção qualificada de conhecimento. Por isso que o governo Trump intervém dessa maneira sobre as universidades, inclusive querendo tirar áreas inteiras de estudos e de conhecimento.

    Esses grupos não estão no poder [no Brasil], como estão os Estados Unidos, mas aspiram chegar ao poder, mediante candidatos de extrema-direita. Então são as duas coisas em síntese: por um lado, eles tentam aproveitar um preconceito, que hoje já não se sustenta, de que a universidade seria um espaço de elite e não do povo, e, por outro, o papel que a universidade no mundo está tendo como espaço de questionamento dos genocídios, da desinformação, do negacionismo sobre a mudança climática.

    A universidade é um espaço naturalmente voltado ao debate, mas há quem pense que um pensamento único, ligado à esquerda, domine as instituições públicas. Você concorda com essa ideia? E ainda há espaço para o debate na USP?

    No ponto de vista da atual extrema direita no mundo, tudo é de esquerda. A palavra “comunista”, “esquerda”, na boca deles, já perdeu valor porque não distingue nada. Então, da mesma maneira que na política brasileira predominam setores pró-capitalistas, que propõem um capitalismo com políticas sociais para que as pessoas não estejam absolutamente à sua sorte no mercado, a universidade também é assim.

    Para essas pessoas [de extrema direita] o fato, por exemplo, de que haja cotas raciais é de esquerda, ter propostas de igualdade de gênero é de esquerda, ter banheiros agênero é de esquerda, mas isso é na cabeça deles, não é a realidade.

    A prova de que a universidade é um espaço de debate é que tem muitíssimos deles, e entre posições muito diferentes. Por exemplo, entre posições que defendem uma maior participação privada na produção de conhecimento. Tem toda uma interação público-privada dentro da USP.

    Agora, eu também não acredito na vontade de debater de pessoas que vêm e se apresentam arrancando faixas de outros e dizendo que não pode haver política. Se não pode haver política, então vai debater o quê? Não me parece que estejam procurando debate, pelo menos esses grupos que vêm e gritam que não pode haver política.

    Tem também alguns que vêm com mesinha para, supostamente, gerar um debate, com opções como, por exemplo, “Quem é melhor: Lula ou Bolsonaro?”. E para quê? Não para, realmente, ter um debate em que se contraponham ideias, mas para gravar um vídeo com uma pessoa, com a velocidade do TikTok.

    A universidade não trabalha em “debate tipo TikTok”. Uma aula universitária não pode ser uma TikTok-aula, em que um grita uma coisa, outro grita outra, como tentam ser os vídeos deles. Isso também mostra que eles não querem um debate.

    Você disse que as universidades têm se posicionado contra genocídios. Há um movimento de alunos que defende que a USP encerre convênios com instituições israelenses e critica a falta de posicionamento da universidade nesses casos. Qual a sua opinião sobre isso? Por outro lado, uma dessas incursões de grupos na FFLCH foi justamente levando a bandeira de Israel.

    Isso é um aspecto muito polêmico dentro da universidade. Eu poderia te dizer que é bastante consensual dentro da universidade que estão sendo cometidos crimes contra a população palestina, mas tem avaliações muito diferentes sobre as características e graus desses crimes.

    Eu, Adrián Fanjul, indivíduo, e não diretor da FFLCH, considero que, sim, as denúncias da ONU e de várias organizações, inclusive israelenses, sobre a atuação das forças israelenses em Gaza, mostram que está sendo praticado um genocídio e uma limpeza étnica. Mas mesmo entre aqueles que pensam dessa maneira, não é consensual que tenha que haver, por exemplo, boicote contra universidades israelenses.

    Tem muita gente que aponta que, dentro de Israel, a universidade também é um espaço de muita resistência contra estas políticas genocidas do governo. Eu não estou convicto de que não tenha que haver, por exemplo, relações universitárias com universidades israelenses.

    De todo caso, o que os setores extremistas que promovem essas invasões [na FFLCH] propõem, não passa por se as universidades devem ter relação ou não com Israel. São setores que não miram Israel por uma questão de defesa dos judeus — aliás, vou esclarecer, eu sou judeu –, mas miram como um modelo de repressão, de governança.

    E essa questão em relação às universidades israelenses não é algo que seja consensual aqui.

    O senhor falou que a direção fará um grande ato no dia 2 de outubro. Pode adiantar o que estão prevendo para este evento? Já tem um lugar para ele?

    Sim, vai ser aqui na FFLCH, no mesmo vão do edifício de História e Geografia onde foram feitas as provocações. A ideia é convidar toda uma diversidade de setores acadêmicos, políticos e sociais. Vamos chamar pessoas de fora, movimentos sociais, grupos de produção cultural que colaboram às vezes com a faculdade, vamos chamar movimentos político… Vamos chamar todo mundo que queira defender a democracia na universidade.