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    A esquerda e o Prêmio Nobel da Paz (por Hubert Alquéres)

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    A escolha de María Corina Machado para o Nobel da Paz de 2025 tem um grande significado. Cassada, perseguida e banida da vida política pelo regime de Nicolás Maduro, a líder venezuelana representa a persistência da luta democrática em condições extremas. Sua indicação rompeu o silêncio internacional em torno da repressão na Venezuela — um silêncio muitas vezes alimentado por alianças ideológicas e conveniências diplomáticas.

    Em vez de reconhecer a gravidade da ditadura chavista, setores da esquerda latino-americana preferiram questionar a legitimidade do prêmio. Choveram críticas de figuras como Leonardo Boff ou Pérez Esquivel, acusando o Comitê Nobel de ter agido politicamente. Por uma dessas ironias da história, a esquerda terceiro-mundista uniu sua voz à de Donald Trump, que, ao sentir-se preterido, também criticou o Nobel por “motivações políticas”. O coro foi engrossado por Putin — aliado de Maduro — para quem Trump foi injustiçado, pois merecia o prêmio da paz. Durma-se com um barulho desses.

    Esse é o paradoxo: a esquerda é implacável na denúncia das violações de direitos humanos cometidas por regimes autoritários de direita, mas indulgente quando os mesmos crimes são praticados por governos de esquerda. Nesses casos, prevalece a sentença de Lula segundo a qual “a democracia é relativa”. Daí nasce a conivência com as ditaduras de Cuba, Nicarágua e Venezuela.

    Esse é o pano de fundo do silêncio sepulcral do governo brasileiro diante do prêmio concedido à líder oposicionista venezuelana. Lula recolheu-se ao mutismo, mas seu assessor para assuntos internacionais — e ideólogo de sua política externa — Celso Amorim, destilou veneno diplomático ao afirmar: “Não sei os critérios do Nobel. Nem ponho em dúvida as qualidades pessoais de María Corina. Eu havia lido uma referência a uma postagem de um porta-voz da Casa Branca, aparentemente retirada, em que se dizia que o Comitê do Nobel priorizou a política em relação à paz. Pessoalmente achei interessante.”

    Esse tipo de declaração revela mais do que prudência diplomática: mostra uma inversão moral. O assessor não se preocupou em lembrar que Corina Machado lutou pacificamente pela alternância de poder. Não mencionou a repressão brutal, as prisões políticas, o controle da Justiça e da imprensa pelo regime. Sua inquietação era outra: que o prêmio pudesse “provocar tensões” e “alimentar radicalismos”. Em outras palavras, para setores do lulismo, o problema não é o autoritarismo de Maduro, mas a resistência de quem o enfrenta.

    De maneira mais transparente, o site Brasil 247 expressa com fidelidade o pensamento do lulismo militante ao afirmar que o Nobel dado a Corina seria “um prenúncio de guerra na América do Sul e de um golpe na Venezuela”. O texto sugere ainda que o Brasil deveria aproveitar a ocasião para se reaproximar de Maduro, reafirmando a velha postura terceiro-mundista que marca parte da esquerda latino-americana. Assim, tenta-se carimbar em Corina Machado as pechas de golpista e de agente do imperialismo americano.

    O caso venezuelano é o mais dramático exemplo dessa complacência ideológica. Desde Hugo Chávez, o país foi sendo esvaziado de suas instituições, da imprensa livre, da economia e, por fim, do próprio povo, que foge aos milhões. Ainda assim, parte da esquerda regional insiste em ver ali um “governo popular” perseguido por sanções externas. No Brasil, essa cegueira se traduz no silêncio cúmplice do governo Lula. Desde seu primeiro mandato, o petista tratou o regime chavista com uma mistura de condescendência e pragmatismo. Mesmo diante das evidências de autoritarismo sob Nicolás Maduro, preferiu manter uma posição ambígua — nem de condenação, nem de apoio aberto à oposição.

    Mas há exceções no campo da esquerda latino-americana. Mais uma vez, elas vêm do Chile de Gabriel Boric. Seu governo oficialmente felicitou Corina pelo Prêmio da Paz, e o chanceler chileno Alberto van Klaveren declarou que “há um regime ditatorial na Venezuela” e elogiou María Corina Machado por “liderar com grande valentia a luta política pacífica contra o regime”. Van Klaveren afirmou ainda: “Cremos que é uma notícia muito importante e estendemos nossas felicitações a María Corina Machado por haver recebido o Prêmio Nobel da Paz. Ela é a dirigente indiscutível da oposição da Venezuela.”

    A posição do governo de Boric está em sintonia com o pensamento das democracias europeias, sintetizado no editorial do jornal El País. O diário espanhol — que expressa com frequência o pensamento da social-democracia — definiu a premiação de Corina como “um gesto simbólico que reafirma o respeito ao Estado de Direito e reconhece a coragem de uma mulher que, apesar de viver na clandestinidade, manteve seus compromissos com a organização cidadã”. O texto recorda ainda que, “apesar das diferenças internas da oposição e do passado radical de Corina, sua figura se projeta como símbolo de uma sociedade que busca renovação e liberdade”. É justamente essa dimensão simbólica que dá força ao Nobel de 2025: ele não é apenas uma homenagem pessoal, mas o reconhecimento da luta de um povo inteiro que se recusa a aceitar a servidão política.

    A premiação de Corina Machado é, portanto, moralmente correta e politicamente necessária. Ela denuncia o regime que transformou a Venezuela em ruínas e reafirma que a comunidade internacional não pode continuar tratando o autoritarismo latino-americano como um detalhe regional. Ao reconhecer a resistência democrática venezuelana, o Comitê Nobel recorda que a verdadeira paz não nasce da resignação, mas da coragem de enfrentar a tirania, à custa de muito sacrifício  e nas condições de viver na clandestinidade em seu próprio país.

    A polêmica em torno do Prêmio Nobel da Paz para Corina Machado deixa exposta a fratura da própria esquerda latino-americana. De um lado, sobrevive uma esquerda prisioneira de dogmas, que relativiza a democracia quando ela incomoda seus aliados. De outro, emerge uma esquerda democrática, capaz de entender que direitos humanos e liberdade não têm cor ideológica. A escolha entre essas duas visões não é apenas um debate político — é um teste moral sobre o futuro das democracias do continente.

     

    Hubert Alquéres é presidente da Academia Paulista de Educação.