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    Contra a violência (por Miguel Esteves Cardoso)

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    Imagine-se que durante uns dias deixássemos de poder ler o que se escreve. As letras esvaíam-se e só ficava um borrão. Mesmo assim, seríamos capazes de ver a intensidade do que estava escrito: a temperatura, por assim dizer.

    Sem poder saber se uma coisa era portuguesa ou não, ou de esquerda ou de direita, ou de um amigo ou inimigo – ou se concordávamos ou não com o que dizia –, apenas sobressairiam as principais características de cada discurso.

    Estou convencido de que a principal característica seria a violência.

    É a violência do que se propõe, mas também a violência com que é proposto.

    Os leitores gostam de violência. Gostam de ver os maus a levar na cabeça. Pelam-se por isso. Acham que se fez justiça.

    Claro que a ideia de quem são os maus é que muda de pessoa para pessoa, mas a sensação de injustiça e o gosto pela violência são dificílimos de desligar – sobretudo numa sociedade em que os mecanismos legais não funcionam como todos desejariam.

    Ao falar de uma violência, a percepção dessa violência difere (é justa ou injusta?), mas de ambos os lados a reacção é expressa com a mesma violência.

    Não é só nos EUA: é em todo o Ocidente. De repente, até os mais moderados começaram a falar com violência, a tratar os adversários com violência verbal, subindo o tom com a maior das naturalidades, sempre com a desculpa de ter de ser assim, “porque senão ninguém repara”

    Sempre houve gente zangada. Mas agora exige-se que se zanguem. Já ninguém finge sequer que respeita os adversários: os adversários são para “abater”, são para “arrasar”.

    À violência da expressão, que embrutece tudo, e obriga toda a gente a arrumar-se segundo as mais toscas “polarizações”, acresce a violência de nunca ter uma dúvida, de nunca pensar duas vezes, de ser incapaz de se pôr no lugar de quem ataca ou de quem o ataca.

    O gosto da violência é um vício que apanha toda a gente, e que precisa de se ir intensificando para manter o sabor.

    Faz medo.

    Como é que se volta atrás?

     

    (Transcrito do PÚBLICO)