Um artigo publicado pela revista Nature em 20 de outubro apontou que os estudantes de doutorado brasileiros estão entre os mais satisfeitos do mundo.
O levantamento, feito com mais de 3,7 mil doutorandos de 107 países, mostrou que 83% dos participantes que estudam no Brasil disseram estar pelo menos moderadamente satisfeitos com seus programas — número acima da média global, que é de 75%. O país também liderou em otimismo, com 80% afirmando gostar de seus cursos e 78% dizendo se sentir realizados com o trabalho acadêmico.
Apesar dos resultados, os próprios autores do estudo alertam que o cenário é mais complexo do que parece. O levantamento teve adesão espontânea e maior participação de alguns países, como Brasil, China e Estados Unidos, o que pode influenciar a representatividade dos dados.
“Pouca valorização”
Para o professor Ronni Amorim, da Universidade de Brasília (UnB), os índices de satisfação não condizem com a realidade enfrentada pela maioria dos doutorandos no país.
“Não acredito que os brasileiros sejam os mais satisfeitos do mundo. As condições de trabalho e o valor das bolsas estão muito aquém das necessidades básicas. Apesar do reajuste recente, o valor ainda é baixo e mostra que os pesquisadores são pouco valorizados”, afirma.
O pesquisador lembra que, além da remuneração insuficiente, a falta de financiamento para insumos e equipamentos também compromete a pesquisa. “Sem recursos, o trabalho perde qualidade. E as perspectivas de carreira, em muitas áreas, continuam desanimadoras”, lamenta.
Doutorado como realização pessoal
Para a doutoranda Luana Costa, de 26 anos, do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), os números da pesquisa refletem apenas parte da realidade.
“Tenho o privilégio de estudar em uma instituição com excelente infraestrutura e auxílios complementares, como vale-alimentação e transporte, que ajudam muito. Mas, de forma geral, muitos doutorandos enfrentam dificuldades significativas. Em grandes cidades, mais da metade da bolsa vai para o aluguel, e sobra pouco para o resto”, ressalta.
Ela acredita que o sentimento de satisfação apontado pela pesquisa também possa ter origem emocional e cultural. “Muitos veem o doutorado como um sonho realizado. Para quem veio de famílias com poucos recursos, poder se dedicar à pesquisa já é uma conquista. Essa sensação de propósito e gratidão ajuda a manter uma percepção positiva, mesmo com tantos desafios”, reflete.
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Luana destaca, porém, que é preciso investir mais para tornar o ambiente acadêmico realmente competitivo. “O reajuste anual das bolsas conforme a inflação e mais financiamento para intercâmbios e eventos científicos seriam passos importantes. Assim, poderíamos formar pesquisadores de excelência aqui, sem precisar sair do país”, afirma.
Fazer doutorado no Brasil ou ir para o exterior?
Apesar de todos os problemas, na comparação com outros países, fazer doutorado no Brasil ainda pode trazer vantagens, dependendo da área e do projeto de vida do pesquisador. O professor Francisco Thiago Silva, da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), explica que o sistema nacional tem características únicas.
“Há um vínculo forte com temas da realidade brasileira e acesso a redes públicas de saúde e educação, o que permite que a pesquisa dialogue com políticas e extensão. Além disso, o custo de mobilidade é menor e muitos estudantes conseguem manter laços familiares e profissionais durante o curso”, destaca.
Por outro lado, ele reconhece que o financiamento e as oportunidades de inserção profissional são mais consistentes no exterior. Segundo ele, em outros países, os laboratórios têm maior densidade de recursos e as redes internacionais facilitam o acesso a empregos fora da academia.
“O que recomendo aos meus orientandos é um percurso híbrido: doutorado aqui, com estágio-sanduíche ou colaborações internacionais bem orientadas. Isso amplia horizontes e fortalece nossa produção científica sem esvaziar o sistema brasileiro”, diz.
Thiago observa, no entanto, que o desafio começa justamente após a titulação. O país forma cerca de 90 mil mestres e doutores por ano, mas ainda carece de políticas que garantam a absorção desses profissionais.
“Sem oportunidades estáveis no setor público, na indústria ou em projetos de inovação social, a satisfação que existe durante o curso nem sempre se traduz em uma trajetória sustentável”, avalia.
Investimento é necessário
Ele defende que o país invista em programas de transição para recém-doutores, com bolsas temporárias vinculadas a metas e projetos estratégicos. Também sugere que o sistema de avaliação valorize outras dimensões da pesquisa.
“Precisamos reconhecer não só os artigos em revistas, mas também a ciência aberta, a extensão e a transferência de conhecimento. É fundamental que a pós-graduação ajude o Brasil a avançar em inovação, justiça social e redução das desigualdades”, finaliza.
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