Em depoimento prestado ao Ministério Público de São Paulo (MPSP), o ex-coordenador de logística rural da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado, Emilio Nicanor, afirmou que se espantou quando notou que pedidos de aditamentos em cerca de 150 contratos para melhorias em estradas rurais haviam sido feitos pela própria pasta, e não pelas empresas responsáveis.
Nicanor é um dos servidores ouvidos pelos promotores que investigam o pagamento de aditivos nesses contratos do programa Melhor Caminho, realizado nos últimos dias de dezembro de 2022, na gestão do ex-governador Rodrigo Garcia. Ao todo, os chamados reequilíbrios econômico financeiros custaram quase R$ 50 milhões aos cofres do Estado. O aval para os aditamentos dos contratos foi feito em bloco.
Os indícios de irregularidades foram constatados pela então recém-empossada gestão de Antonio Junqueira na secretaria, no início do mandato de Tarcísio de Freitas (Republicanos). Em junho de 2023, a equipe de Junqueira enviou um relatório ao Ministério Público informando inconsistências encontradas nos contratos.
A denúncia ensejou a abertura de 147 inquéritos no MPSP. Até o momento, 12 deles deram origem a ações civis públicas.
O documento apontava que R$ 49,2 milhões foram pagos em apenas quatro dias de dezembro de 2022. Os aditivos ainda teriam comprometido 25% do orçamento do programa previsto para o ano seguinte, segundo a própria pasta à época.
Leia também
-
Subsecretário do Agro tem bens bloqueados por contrato suspeito em SP
-
Governo de SP recua e defende contratos denunciados por ele mesmo
-
Tarcísio volta a atacar PT e defende privatização de estatais em SP
-
Tarcísio reage a plano anti-roubo de celular do PT: “Já fazemos em SP”
Pedidos genéricos
Além do aval em bloco, o acréscimo no valor dos contratos teriam sido concedidos sem demonstração adequada de desequilíbrio contratual e sem análise individualizada, e a partir de pedidos semelhantes e genéricos. Segundo os autos, a decisão foi tomada contrariando pareceres da consultoria jurídica da própria secretaria e da Subprocuradoria-Geral do Estado.
“Os pareceres, tanto da consultoria jurídica da secretaria como da subprocuradora determinavam os cuidados para que não fossem permitidas situações como a do reequilíbrio econômico-financeiro sem a devida justificação e devidamente comprovado. Então, me surgiu também com espanto que todas as empresas fizeram uma justificativa igual”, afirmou Nicanor em depoimento aos promotores feito no dia 6 de agosto deste ano.
À época, Nicanor ocupava o cargo de coordenador de logística, responsável pelos contratos do programa. Na nova gestão, o servidor havia substituído Henrique Fraga, um dos personagens centrais das investigações do Ministério Público.
De acordo com a promotoria, Fraga foi o responsável por analisar e liberar diversos desses aditivos. Até o momento, o ex-servidor é alvo de nove ações do MPSP sobre o caso e já acumula pedidos de bloqueios de bens que somam R$ 2,8 milhões.
“E aí eu venho a saber que, na verdade, não foram as empresas que pediram o reequilíbrio, foi a secretaria, através da coordenadoria de logística rural, que distribuiu um documento, onde as empresas simplesmente assinaram. Foi a primeira vez que eu vi o rabo balançar o cavalo. A administração pedindo para que a empresa fizesse o pedido de reequilíbrio, em que todos são iguais”, disse Nicanor aos promotores.
Entre os fatores apontados, está a concessão do aumento com base em justificativa de eventos externos que aconteceram antes da assinatura do contrato, como a pandemia de Covid-19 e a modificação da política de preços de combustíveis.
Desgaste político
O Metrópoles mostrou que, em meio ao desgaste político gerado pelas denúncias, especialmente em alas do MDB ligadas ao deputado estadual Itamar Borges, que comandou a pasta em 2022, a gestão Tarcísio passou a minar a autoridade de Junqueira na pasta, a começar pela exoneração do então secretário-executivo Marcos Boettcher, braço direito do titular.
Após uma série de ingerências na pasta, Junqueira pediu exoneração no dia 4 de outubro de 2023. Com a saída, a pasta recuou e passou a defender a lisura dos contratos.
O atual secretário, Guilherme Piai (Republicanos), havia sido promovido em setembro daquele ano para secretário-executivo, no lugar do Boettcher, após se destacar na direção do Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), onde levava adiante o programa de regularização de terras, um dos carros-chefe da gestão Tarcísio na área.
Ao assumir o posto, Piai passou a tomar decisões sem consultar Junqueira, enquanto o titular ainda estava no cargo. Entre elas, a exoneração do então coordenador de logística, Emilio Nicanor.
“Houve uma reunião onde ele (Piai) chamou, na época, o chefe de gabinete, eu, como coordenador de logística, mais um rapaz da administração e, se não me engano, de duas moças. Nos disse que a partir daquele momento, estávamos dispensados das funções na secretaria. Quinze minutos depois, o secretário (Junqueira) me chamou, perguntou o que que ele tinha falado. Eu falei que mandou embora. O secretário Junqueira não tinha o conhecimento de que o secretário executivo estava dispensando uma parte do time. Ele já ventilava a própria saída. Com a saída do secretário, o Guilherme Piai assumiu como secretário”, afirmou Nicanor no depoimento.
Como coordenador de logística na nova gestão, Nicanor também havia sido responsável por um outro relatório no qual apontava possíveis irregularidades nas primeiras ordens de serviço para pagamentos das obras do Melhor Caminho. No documento, datado de 29 de setembro de 2023, ele dizia que algumas empresas teriam utilizado fotos idênticas para comprovar o início das obras em cidades diferentes. Essa apuração não avançou.
O que dizem os envolvidos
Em nota, o advogado de defesa de Henrique Fraga, Fernando José da Costa, afirmou que as ações civis públicas ainda estão em curso e que a defesa não apresentou contestação em todas elas.
“Ressalta, ainda, a regularidade da concessão do reequilíbrio econômico-financeiro, prevista em lei e necessária diante da defasagem de preços causada pela pandemia e pela guerra na Ucrânia, destacando que não há qualquer imputação de dolo ao servidor público”, diz o advogado.
Já o Governo de São Paulo disse, também por meio de nota, que a Secretaria de Agricultura e Abastecimento encaminhou ao Ministério Público Estadual, em 2023, um relatório com as denúncias de irregularidades no programa Melhor Caminho, referentes à gestão anterior.
“Paralelamente, realizou apuração interna dos fatos, observando todos os critérios técnicos e preceitos legais. Os resultados foram encaminhados ao MP. A Secretaria acompanha as investigações conduzidas pela Promotoria e permanece à disposição das autoridades para prestar total colaboração”, completou.