Oito dias antes de morrer, Frida Khalo pintou sua última tela. Era uma natureza morta, porém verde e vermelhamente viva. Eram melancias e numa das fatias ela escreveu: Viva la Vida. Melancia é uma das frutas mais bonitas, generosas e alegres que existem. Trouxe evocações felizes para uma mexicana muito sofrida, intensa e talentosa que foi bem longe em tudo o que fez.
As melancias da Frida me lembraram outra melancia, a que encontrei num ponto de ônibus da Asa Norte, faz algum tempo. A redonda estava no colo de um homem de traços fortes, mãos crispadas de veias grossas, roupas e mochila surradas e botinas puídas.
Era um sábado depois do almoço, ponto lotado de gente ansiosa pra voltar pra casa. Logo, a melancia começou a me afligir. Fiquei imaginando o homem entrando no ônibus, a melancia pedindo passagem, os passageiros reclamando de mais um incômodo. Por que esse homem não comprou essa melancia perto de casa? É cada uma que a gente vê, cruz credo.
Fui me irritando com a melancia, imaginando nós duas disputando espaço no ônibus, ela impondo sua presença gigante, ovalada, rotunda, me espremendo contra os demais passageiros ou quem sabe caindo sobre os meus pés. Por que esse homem inventou de carregar uma melancia no ônibus, ainda mais nesse horário? Bem que ela poderia cair no empurra-empurra da entrada, se espatifar no asfalto e ficar por ali mesmo. Não era justo uma melancia tomar o meu lugar.
Eu ainda estava comprando briga com a melancia quando o dono dela começou a conversar com um homem ao lado. Contou que estava levando a fruta para os filhos: “Os moleques lá de casa gostam que só de uma melancia. Levo eles pro quintal, parto a bichona no meio, dou uma colher pra cada um e eles fazem a festa. Igualzinho como o pai fazia comigo e meus irmãos”.
O homem contava que todo sábado levava uma melancia para casa. Que o mercadinho de perto da obra onde ele trabalhava já deixava a bichona separada. Era uma melancia docinha como o quê. Era vermelha que nem crista de galo. E não era murcha como aquelas que ele havia comprado na feira.
Ele chamava a gostosa que iria tomar o meu lugar no ônibus de “a melancia dos meus moleques”. Havia no tom de voz do homem um orgulho de pai e provedor.
Quando o ônibus chegou, o homem da melancia, a melancia, eu e mais um monte de gente corremos para a porta de entrada. Tive o impulso de avançar para me livrar da gorducha mas de repente me senti ridícula e impulsivamente recuei e dei passagem à melancia e ao dono dela. Quase pedi desculpas aos dois, quase fiz reverência. E fiquei com uma inveja danada daquela doce felicidade que o pai levava para os filhos num sábado à tarde.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.
