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    Geraldo Filme e as micro-áfricas paulistas

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    É difícil, mas se você parar numa esquina qualquer e fechar os olhos no meio do caos da metrópole, você vai ouvir. Sob as camadas de ruídos, um batuque sussurra a história dos negros na cidade de São Paulo. São as micro-áfricas ecoando sambas, ilhas de resistência e música que navegam pelo tempo e pelo asfalto. Nesses sambas, cantam muitas vozes. Uma delas é de Geraldo Filme.

    Nessa cidade destruída e reconstruída pela violência da especulação imobiliária, esses oásis negros são ocupações temporárias de quintais e cortiços, rodas de samba com instrumentos improvisados em uma rua ou praça da Bela Vista, Liberdade ou Barra Funda. O encontro poderia mergulhar na noite – mas também terminar assim que a polícia chegasse. Eram os anos 1950-60, mas poderiam ser 1980, 2001 ou 2025, já que a festa da diáspora é sempre uma ameaça para a opressão pública.

    O samba paulistano nasceu onde? Quem narra essa travessia sonora e social é o historiador Amailton Magno Azevedo no livro “Sambas, Quintais e Arranha-Céus – as micro-áfricas em São Paulo” (Dandara Editora, 3ª edição). Pontuado pela trajetória de Geraldo Filme, o autor embrenhar-se em suas origens e derruba mitos, como a ideia de que o samba paulistano poderia ser um derivado do carioca.

    Azevedo revela que as raízes do samba paulistano estão entrelaçadas ao samba rural, também conhecido como samba de bumbo, na metade do século passado. “Esse samba oral se desenvolveu só aqui. Os pesquisadores vão destacar uma derivação do encontro do Jongo do Sudeste com os sambas do Nordeste. Esses encontros ocorriam em Pirapora do Bom Jesus, Barra Funda e Campinas, que funcionavam como polos de reunião das comunidades negras.

    O conceito de micro-áfricas é criado por Azevedo para compreender as formas de resistência cultural negra em uma cidade que buscava se embranquecer. “Pensei nesse conceito para revelar territórios de resistência, redutos culturais, estéticos, filosóficos e existenciais numa cidade que se queria branca e moderna”, afirma. Ele lembra que na década de 1950, 90% da população paulistana era branca — fruto de políticas de embranquecimento. Ainda assim, “essas micro-áfricas estão hoje disseminadas nas veias da metrópole, em todas as regiões”.

    Entre o samba de Pirapora e o da capital, entre rural e o urbano, o antigo e o moderno, o crescimento descontrolado da cidade e os apagamentos negros, existe uma ponte. Seu nome é Geraldo Filme de Souza (1927–1995). Trafegando pelas escolas de carnaval e pelas rodas, sua obra é uma crônica das vidas negras que construíram a cidade. Nascido em São João da Boa Vista, no interior paulista, Filme chegou ainda criança à  Barra Funda. Foi passista e compositor do Vai-Vai e Lavapés..

    Nos quintais e encontros em Pirapora do Bom Jesus, aprendeu a cadência dos bumbos e a oralidade dos cantos, unindo religiosidade e memória, questionando o racismo e a desigualdade e celebrando a força das festas populares. Azevedo vê em Geraldo Filme um elo entre tradição e modernidade: “Ele inventa um samba moderno, mas sem negar os sambas rurais. Inventa uma linguagem moderna reiterando a tradição estética. A tradição é sempre a fonte inesgotável de referência, aprendizado, consulta e citação”

    Se Filme foi essa potência, por que Adoniran Barbosa se transformou em sinônimo de samba em São Paulo? Azevedo vê quatro razões: “Adoniran  se inseriu no mercado fonográfico muito mais cedo do que o Geraldo; os medalhões da MPB, com a Elis Regina, gravaram Adoniran. O mito, criado por Vinícius de Moraes, de que São Paulo não tinha samba; e Geraldo gravou seu primeiro disco com idade avançada”

    Geraldo Filme não estava só. Zeca da Casa Verde, Toniquinho Batuqueiro, Osvaldinho da Cuíca, Pato N´água, Xangô, Carlão General da Banda entre tantos outros foram redescobertos por pesquisadores, jornalistas e músicos. “No século 21  uma nova geração de historiadores e historiadoras, e eu me incluo nessa geração, começaram a perguntar se São Paulo não tinha samba. A imprensa passou a falar deles, e o programa Ensaio, da TV Cultura, foi  importante para dar visibilidade ao Geraldo Filme.  E os músicos também. Fabiana Cozza, Beth Carvalho e Tobias da Vai-Vai gravaram Geraldo Filme”.

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