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O devido processo na era dos novos puritanos

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O devido processo na era dos novos puritanos

Nos séculos passados, a infâmia pública era decretada na praça central, diante da turba reunida para assistir à punição do desonrado. Mais tarde, o pelourinho migrou para os jornais e, depois, para a televisão. Hoje, o tribunal é outro: são os feeds das redes sociais, com seus algoritmos ávidos por indignação instantânea. E a pena, embora sem sentença formal, é muitas vezes socialmente irreversível.

O caso do professor da Universidade de São Paulo Carlos Portugal Gouveia preso em Brookline, Massachusetts, EUA, depois de disparos de uma arma de pressão, sob acusação de antissemitismo, tornou-se mais um exemplo emblemático dessa nova ordem punitiva.

O episódio ocorreu no início de outubro. Contudo, até o final de domingo, a sua conta no Twitter já havia sido visitada por mais de 1,5 milhão de pessoas.

No atual momento, ninguém sabe ao certo o que ocorreu. Mas a dúvida — elemento essencial de qualquer sistema de justiça — já não importa. Para a multidão digital, ele é culpado crime de racismo. Basta ler os mais de mil comentários já publicados na sua conta.

Curiosamente, a própria sinagoga local publicou nota em tom moderado, relativizando a hipótese de crime de ódio e ressaltando ser necessário aguardar o desfecho da investigação judicial:

“Pelo que nos foi inicialmente informado pela polícia, o indivíduo não sabia que morava ao lado — e que estava disparando sua arma de chumbinho ao lado — de uma sinagoga, nem que se tratava de um feriado religioso. Fomos informados de que ele disse estar atirando em ratos; a janela de um carro estacionado na Beacon foi atingida. Era potencialmente perigoso usar uma arma de chumbinho em um local tão movimentado, mas não parece ter sido motivado por antissemitismo. Agora, o caso seguirá pelo sistema judicial.”

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Ou seja, até mesmo a suposta vítima institucional demonstrou cautela e disse que o caso será investigado e eventualmente julgado pelos poderes estatais constituídos. Mas a prudência da sinagoga não é compreendida pela maioria dos usuários das redes sociais. Na internet, a sentença já foi proferida — e executada.

Em artigo intitulado The New Puritans, publicado na revista The Atlantic, em 2021, a jornalista Anne Applebaum descreveu com precisão o ritual contemporâneo da destruição reputacional a que possivelmente será submetido o professor Carlos Gouveia, já afastado pela Universidade de Harvard, enquanto persistir qualquer dúvida e ainda que ele venha a ser rapidamente inocentado.

Segundo ela, a primeira punição não é institucional — é social: “A primeira coisa que acontece quando você é acusado de violar um código social, quando se vê no centro de uma tempestade nas redes sociais por algo que disse — ou que alegam que você disse — é o silêncio. O telefone para de tocar. As pessoas param de falar com você. Você se torna tóxico.”

A autora complementa, contando uma história de um colega que passou pelo linchamento digital: “‘No meu departamento, tenho dezenas de colegas — acho que não falei com nenhum deles no último ano’, contou-me um acadêmico. ‘Um dos meus colegas, com quem almoçava pelo menos uma vez por semana há mais de uma década, simplesmente se recusou a falar comigo, sem nem fazer perguntas.’ Outro estimou que, entre os cerca de 20 membros de seu departamento, ‘há dois — um que não tem poder algum e outro que está prestes a se aposentar — que ainda falam comigo.’”

Applebaum descreve também as nuances morais dos que se afastam: “Primeiro, os ‘heróis’, muito poucos, que ‘insistem no devido processo antes de arruinar a vida de outra pessoa e permanecem ao lado dos amigos’. Segundo, os ‘vilões’, que acham que você deve ‘perder imediatamente seu sustento assim que a acusação for feita’. […] Mas a maioria se enquadrou em uma terceira categoria: os ‘bons, mas inúteis’. Eles não necessariamente pensam o pior de você e até gostariam que você tivesse direito ao devido processo, mas, sabe como é, não se aprofundaram no caso. Talvez tenham razões para pensar com generosidade sobre você, mas estão ocupados demais para ajudar. Ou têm muito a perder.”

E ressalta que a pena não exige condenação formal: “Mesmo que você não tenha sido suspenso, punido ou considerado culpado de nada, você não consegue mais atuar em sua profissão. Se você é professor, ninguém quer você como docente ou orientador (‘Os pós-graduandos deixaram claro que eu era uma ‘não-pessoa’ e que não poderia ser tolerado’). Você não consegue publicar em revistas acadêmicas. Não pode pedir demissão, porque ninguém mais vai contratá-lo. Se você é jornalista, pode descobrir que não conseguirá publicar em lugar nenhum.”

O mais perturbador é que, ao contrário da pena estatal, a pena social não tem prazo de prescrição: “O isolamento somado à humilhação pública e à perda de renda constitui uma sanção severa para um adulto, com repercussões pessoais e psicológicas de longo prazo — especialmente porque as ‘sentenças’ nesses casos têm duração indeterminada. Elliott pensou em suicídio e escreveu que ‘todo relato em primeira pessoa que li sobre humilhação pública — e li mais do que gostaria — inclui pensamentos suicidas.’ Massey também passou por isso: ‘Tinha um plano e os meios para executá-lo; então tive um ataque de pânico e peguei um táxi até o pronto-socorro.’ David Bucci […] de fato tirou a própria vida ao perceber que talvez nunca conseguiria restaurar sua reputação.”

Em outro texto, intitulado The Public-Shaming Pandemic, publicado por Daniel T. Max na revista The New Yorker em 2020, a evolução histórica da vergonha pública é descrita com clareza: “A humilhação pública costumava ocorrer na praça municipal. No século XIX, passou a acontecer nos jornais, e no século XX, o palco passou a ser a televisão. Hoje, as pessoas são ridicularizadas online. A internet — com sua possibilidade de anonimato, a ausência de filtros ou moderadores, e sua capacidade de amplificar dores passageiras — tornou assustadoramente fácil gerar uma onda instantânea de indignação em massa.”

E segue com exemplos de punição sem crime: “A humilhação digital impõe uma punição rápida e avassaladora — muitas vezes, de forma injusta. Nem é preciso estar com a razão para crucificar alguém publicamente: basta sentir que foi vítima de alguma injustiça.”

A compreensão da importância do devido processo legal nas sociedades contemporâneas precisa ser reafirmada. Não apenas como garantia jurídica contra abusos formais do Estado, mas como escudo contra condenações emocionais e instantâneas promovidas por coletivos digitais — muitas vezes, com a cumplicidade de autoridades que preferem o linchamento digital à serenidade da justiça.

Até em razão de a justiça sem limites não ser justiça: ser fúria com verniz moral.

Como lembrou um professor ouvido por Applebaum, “o ostracismo era considerado uma sanção enorme nos tempos antigos — ser expulso do seu grupo era uma sentença de morte.”

Hoje, a coletividade não mais mata o corpo do sujeito; mata a biografia, a reputação e o próprio futuro da pessoa.

*Flávio Jardim é desembargador do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) e professor titular do IDP

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