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    O roubo no Louvre é mais um episódio do desastre nacional francês

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    A França é exemplo de que uma civilização construída durante séculos pode ser destruída em anos, e o roubo das joias do Museu do Louvre, no domingo, é mais um episódio do desastre nacional francês.

    Ao contrário do que dizem os jornais, o roubo não teve nada de cinematográfico, embora um filme possa ser feito a partir dele, desde que o roteirista consiga emprestar moldura interessante a essa ladroagem vagabunda, só perpetrável em um país sem segurança, sem polícia, sem governo que não seja apenas um coletor voraz de impostos, mal gastador de dinheiro público.

    Comecei a perceber que havia algo de bem errado na França há mais de década. Foi quando os trens começaram a não funcionar como antes. Em países dignos desse nome, os trens são um dos melhores termômetros para verificar o estado de saúde da sociedade como um todo. Não há margem para nenhuma subjetividade na avaliação desse serviço.

    A complexidade de milhares de operações ferroviárias diárias requer infraestrutura impecável, sinergias urbanas, interurbanas e internacionais perfeitas, profissionais gabaritados nas diversas pontas, sistema sincrônico próximo ao infalível e, não menos importante, comprometimento. Atributos de uma sociedade funcional.

    Ao final, se os trens são pontuais e limpos, isso significa que a sociedade, em geral, vai bem; se são impontuais e sujos, é porque ela vai mal. Demonstra incapacidade, desleixo, falta de compromisso com os seus cidadãos.

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    O serviço ferroviário francês era um primor; hoje, é decadente. O fato de ele ser ainda incomparável em relação aos seus praticamente inexistentes correlatos brasileiros diz menos sobre a França e muito mais sobre esta joça aqui, evidentemente.

    Os museus também são bom termômetro social. Se são bem conservados, seguros e bem organizados na exposição do seu acervo, eles mostram uma sociedade cuidadosa com o seu patrimônio, com a sua história e com a transmissão de conhecimento.

    Não há como negar que os museus franceses ainda estão entre os melhores do mundo, mas desde que a espada de Charles X foi roubada do mesmo Louvre, faz quase 50 anos, nada de muito efetivo foi feito para evitar que preciosidades fossem surrupiadas.

    Ocorreram outros roubos, desde então, e não apenas no Louvre. Em setembro, por exemplo, seis quilos de ouro, em pepitas, foram levadas do Museu de História Natural de Paris, durante a noite.

    Multiplicam-se, ainda, os furtos de obras de arte de igrejas francesas, sem que haja real empenho para prender os ladrões. Em 2024, foram registradas 288 ocorrências, contra 263 em 2023. Neste ano, entre janeiro e junho, já houve 156 furtos, alta de 56% em relação ao mesmo período do ano passado.

    As próprias igrejas estão em perigo. Em 2019, a Notre-Dame de Paris ardeu em um incêndio que quase a destruiu. O custo da reconstrução foi de 700 milhões de euros, a catedral voltou a resplandecer, mas não se diz por que houve o incêndio.

    O desastre nacional francês também tem esse motivo: ninguém investiga nada em relação a coisa nenhuma e, quando investiga, deixa de apontar claramente os culpados, porque isso provaria a incompetência e a negligência governamentais e demonstraria até certa cumplicidade no solapamento da cultura e das tradições francesas, em prol de um multiculturalismo suicida, que nada tem a ver com tolerância saudável e necessária, como a aponta a direita, que embrulha o que é certo em discursos xenofóbicos.

    Chegou-se, assim, a liberdades antes inadmissíveis, que vão do sujeito que acendeu o cigarro na chama eterna do soldado desconhecido, no Arco do Triunfo, até o roubo à luz do dia, com o museu aberto ao público, das joias napoleônicas do Louvre, o mais recente episódio do descalabro amplo e irrestrito.

    Entre as peças da coleção roubadas no domingo, havia um “broche relicário”, que pertenceu à imperatriz Eugenie, mulher de Napoleão III. O seu valor histórico é, possivelmente, maior do que o de todas as demais peças que foram levadas pelos ladrões.

    O “broche-relicário” resume três séculos da história francesa. Os seus diamantes laterais, dispostos em forma de borboleta na joia feita para Eugenie, foram presenteados pelo cardeal Mazarin a Luís XIV e depois serviram de brincos a Maria Antonieta. O diamante maior, ao centro, era o quarto botão do gibão do mesmo Luís XIV, o Rei Sol.

    Era característica da monarquia francesa reutilizar pedras preciosas como símbolos da sua continuidade. Mas o que tem continuidade hoje, na França, é uma obra de destruição da sua cultura, da sua sociedade, da sua economia, da sua civilização.