Uma professora aprovada em 1º lugar em concurso na Universidade de São Paulo (USP) viu sua aprovação anulada após ação de candidatos brancos; e ao mesmo tempo, um ministro sai em defesa da esposa ao ser acusada de receber cargo público, qual o fio que une esses dois episódios? É sobre quem decide quem tem direito ao mérito e quem recebe privilégios, e revela como, no Brasil, raça, poder e rede de influências ainda desenham o tabuleiro de oportunidades.
Atualmente, o Brasil se depara com dois episódios que, à primeira vista, parecem distintos, mas que, em profundidade, apontam para um mesmo nó: as regras invisíveis que regulam quem “merece” e quem “tem acesso”. O primeiro caso envolve a professora e doutora em Literatura, Érica Bispo, aprovada em 1º lugar no concurso para docente da USP, na disciplina de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa. O segundo envolve a esposa do ministro da Educação, Camilo Santana, Onélia Santana, que recebeu cargo público e cuja nomeação gerou críticas que o ministro prontamente refutou.
Érica Bispo relata que foi “a única candidata preta” no concurso competitivo que venceu, e logo após isso teve a aprovação questionada por seis candidatos brancos, que alegaram suspeição da banca e possível favorecimento. O que se coloca aqui não é meramente uma disputa individual, mas a forma como sistemas acadêmicos e institucionais reagem quando a vitória advém de quem historicamente foi excluído. A anulação da aprovação, segundo ela, se deu por “fotos aleatórias” que teriam indicado uma “amizade íntima” com membros da banca, apesar de as provas entregues terem sido consistentes.
Trata‐se de um momento simbólico: a aprovação, que era celebrada, torna‐se passível de anulação simplesmente porque quem venceu não se encaixa no padrão dominante. É uma mensagem institucional sobre quem pode ou não ocupar determinados espaços. A academia, que prega universalismo e isenção, na prática, reproduz vieses estruturais.
Leia também
-
A urgência simbólica e institucional de uma ministra negra no STF
-
Malês: a revolta que o Brasil tentou apagar agora ganha a tela
-
Racismo não é brincadeira: a escola precisa ensinar
Já no segundo caso, o que se coloca é outra face desse mecanismo: o da legitimidade conferida pelo poder. Onélia Santana, formada em Letras, com MBA em Administração Pública e doutorado em Ciências da Saúde, assume cargo de conselheira no Tribunal de Contas do Ceará. Quando surgiram críticas à sua nomeação, o ministro defendeu a esposa argumentando: “Ela tem doutorado, tem uma história de vida, de contribuição àquele Estado e foi escolhida quase por unanimidade pela Assembleia Legislativa”.
Aqui há uma dinâmica diferente daquela da professora: não se discute o mérito acadêmico ou técnico (ao menos oficialmente), mas a rede de poder e influência que legitima essa nomeação. A pergunta que emerge é: até que ponto ocupar cargo público exige não apenas qualificação, mas aprovação por quem já domina o poder?
Ambos os episódios falam sobre legitimação: quem é considerado apto, quem é descartado, quem consegue transformar qualificação em oportunidade. Quando a professora negra é aprovada e depois tem o concurso anulado, vê‐se uma recusa institucional ao reconhecimento pleno de seu mérito. Quando a esposa de ministro assume cargo público e aparece a defesa porque “ela é técnica conceituada”, vê‐se uma apropriação de uma legitimidade já garantida pelo sistema de poder.
Em suma, quem vem de trajetórias historicamente marginalizadas encontra não só obstáculos técnicos, mas obstáculos simbólicos. Quem está próximo das redes de poder, mesmo quando enfrenta críticas, conta com a legitimidade antecipada que o sistema lhe confere. Esses casos apontam para a necessidade de questionar mais profundamente a estrutura da meritocracia no Brasil. Meritocracia pressupõe igualdade de partida. Mas se a partida já está desigual, o “mérito” se torna filtro para manter privilégios. Instituições públicas, acadêmicas ou administrativas, devem não apenas garantir processos formais justos, mas enfrentar as assimetrias de legitimidade e acesso.
Além disso, o debate exige transparência: quais são os critérios que tornam uma nomeação aceitável? Quais são os indícios que justificam a anulação de um concurso? Em que medida uma rede de poder altera a percepção de mérito? Sem essa reflexão, continuamos a operar sob um sistema que diz “todos têm chance”, mas onde muitos são classificados como “inaptos” por fatores que vão além de seu desempenho.
