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    “Se eu sumir, foi o Yuri”, disse estudante trans antes de desaparecer

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    A estudante trans da Universidade Estadual Paulista (Unesp) que desapareceu em 12 de junho deste ano, em Ilha Solteira, no interior de São Paulo, sob suspeita de ter sido vítima de feminicídio, desabafou a uma amiga, em diferentes ocasiões, sobre as ameaças de morte que recebia do namorado.

    Carmen de Oliveira Alves, uma mulher trans, tinha um relacionamento conturbado com Marcos Yuri Amorim, também estudante da Unesp. Ele não queria assumir o namoro e mantinha relações com outras pessoas, como com o policial militar ambiental da reserva Roberto Carlos Oliveira.

    Insatisfeita, Carmen pressionava Yuri para assumir a relação, o que causava brigas entre o casal – momentos em que ele a ameaçava de morte, conforme mostram mensagens enviadas pela estudante a uma amiga. As transcrições estão presentes na denúncia oferecida pelo Ministério Público de São Paulo (MPSP) à Justiça na última segunda (20/10).

    3 imagensA jovem desapareceu após fazer uma prova do curso de zootecnia, no dia 12 de junho, quando foi vista pela última vez, na saída do Campus Ilha Solteira da UnespCarmen de Oliveira Alves, estudante assassinadaFechar modal.1 de 3

    Sem respostas por quase 29 dias, amigos e familiares de Carmen iniciaram movimentos de buscas nas redes sociais

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    A jovem desapareceu após fazer uma prova do curso de zootecnia, no dia 12 de junho, quando foi vista pela última vez, na saída do Campus Ilha Solteira da Unesp

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    Carmen de Oliveira Alves, estudante assassinada

    Arquivo Pessoal

    Relembre o caso

    • Carmen desapareceu em 12 de junho deste ano, após apresentar um trabalho na Unesp de Ilha Solteira, no interior de São Paulo, onde estudava.
    • A suspeita da Polícia Civil e do MPSP é que ela, que é uma mulher trans, foi vítima de feminicídio, perpetrado pelo namorado Yuri.
    • De acordo com as investigações, ele não queria assumir o relacionamento, que já durava 15 anos, e mantinha relações com outras pessoas, como Roberto.
    • Para pressionar o rapaz a assumir o namoro, a estudante montou um dossiê com informações sobre roubos que ele teria praticado.
    • A pasta enfureceu Yuri, e teria motivado o assassinato de Carmen.
    • Segundo o MPSP, ela foi morta naquele mesmo 12 de junho, mas o corpo da estudante nunca foi encontrado.
    • Yuri e Roberto estão presos desde 10 de julho, e são acusados de feminicídio, ocultação de cadáver e fraude processual.
    • Em 20 de outubro, o MPSP apresentou denúncia acusando um terceiro suspeito, que seria vizinho de Yuri e teria ajudado a ocultar os vestígios do crime.

    Mensagens à amiga expõe ameaças de morte

    “Amiga, eu quero falar uma coisa muito séria com você. Se acontecer alguma coisa comigo, saiba que foi o Yuri, tá? Só isso”, disse Carmen, em 9 de março deste ano, três meses antes de desaparecer.

    Em outra mensagem, a estudante diz que precisava avisar pelo menos uma pessoa, “porque depois morre e ainda fica impune um viado velho desse”.  “Tivemos uma briga bem séria, e ele me ameaçou de morte! Eu não duvido nada do Yuri”, disse, em outro momento.

    Em 22 de março, Carmen viu Yuri com outra mulher em uma sorveteria da cidade, o que causaria uma nova briga, e novas ameaças. “Se eu sumir, se acontecer alguma coisa comigo, sabe que foi esse fodido e coloca ele na cadeia, pelo amor de Deus”, pediu à amiga.

    A estudante ainda acrescentou: “Acho que ele pode fazer isso, tá? Ele tem arma, tem as coisas, falou que vai me matar e me jogar no rio, que ninguém vai nem achar, entendeu?”.

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    Dossiê para pressionar o namorado

    Carmen criou, em 8 de junho deste ano, uma pasta no Google Drive intitulada “Yuri Trambiques”, com prints e áudios de conversas trocadas entre o casal e reportagens sobre crimes que a estudante atribuía a prática a ele.

    O objetivo, segundo as investigações, era pressionar o rapaz para que ele assumisse o namoro para a família.

    “A partir de então, Carmem passou a ser vista por Marcos Yuri como uma ameaça real e direta à sua imagem, reputação, liberdade e impunidade”, afirmou a promotora Laís Deguti na denúncia.

    Conforme a denúncia do MPSP, cerca de três horas após matar Carmen, Yuri acessou o celular dela e apagou a pasta com supostas provas dos crimes que cometeu (veja mais abaixo).

    Dinâmica do assassinato

    Segundo a denúncia, Carmen e Yuri passaram a noite juntos no sítio dele, em Ilha Solteira. Pela manhã, foram à faculdade, onde apresentaram um trabalho de microbiologia. Após a aula, ele tentou visitar Roberto, mas não o encontrou em casa. Em seguida, retornou ao sítio, onde a namorada já o esperava.

    No sítio, Yuri agrediu Carmen, fazendo com que ela caísse desacordada no chão. Ele chamou Roberto, que chegou cerca de 30 minutos depois em sua caminhonete, uma L200 Triton.

    Juntos, os dois mataram Carmen com o uso de uma barra de ferro. Eles enrolaram o corpo da vítima e a arma utilizada no crime em uma lona, e colocaram na traseira do veículo, junto com a bicicleta elétrica da estudante, também ainda não encontrada.

    A dupla deixou o corpo de Carmen em local incerto, distante do sítio, e retornou para limpar os vestígios do homicídio.

    “Inicialmente, retiraram a terra por onde o sangue da vítima escorreu, depositando-a em um balde e cobriram-no com um saco de ração. Na sequência, os denunciados colocaram o balde com a terra ensanguentada, o saco de ração, uma pá e uma enxada na carroceria da caminhonete de Roberto e seguiram no veículo rumo ao bairro Ipê”, diz trecho da denúncia.

    No percurso, cerca de três horas depois da morte de Carmen, Yuri utilizou o celular dela para acessar uma pasta no Google Drive em que a estudante havia reunido provas de crimes supostamente cometidos por ele. O suspeito apagou todos os documentos. Em seguida, o celular da vítima foi destruído e jogado em um acostamento, próximo ao bairro Ipê.

    Vizinho ajudou a ocultar o corpo

    Mais tarde, Yuri foi até o sítio de Paulo Henrique Messa, seu vizinho – o que ficou provado, pois os dois utilizaram a mesma rede Wi-Fi disponível para acesso no imóvel. Minutos antes, Paulo havia feito compras em uma loja chamada Ardel Náutica e Pesca.

    Eles ficaram poucos minutos no sítio de Paulo e, depois, seguiram de barco para o endereço de Yuri – ambos os imóveis ficam às margens do Rio São José.

    “Ao chegarem no sítio de Marcos Yuri, Paulo e Marcos Yuri colocaram no barco o corpo de Carmen, o instrumento utilizado no crime e a bicicleta elétrica da vítima e seguiram a local incerto para ocultá-lo. Até o momento da presente denúncia, não se sabe o local onde os denunciados ocultaram o corpo da vítima”, diz outro trecho da denúncia.

    A investigação mostrou que Paulo e Yuri estiveram juntos entre 14h38 e 14h53 e entre 15h18 e 18h34 daquele 12 de junho, “concluindo a execução da ocultação do corpo de Carmen e do instrumento utilizado no dia dos fatos”.

    Naquela noite, Roberto retornou ao sítio de Yuri, onde juntos ocultaram provas digitais, retirando o cartão de memória da câmara de segurança do sítio e substituindo o roteador da internet, sendo que ambos funcionavam até aquela data.

    Ocultação de provas

    Além da limpeza de vestígios feita na data do crime, os suspeitos se dedicaram a ocultar provas do ocorrido nos dias seguintes ao homicídio. Em 14 de junho, o vizinho Paulo instruiu Yuri, por meio de uma terceira pessoa, a apagar conversas no celular.

    “O Paulinho me ligou aqui, falando que não tá na cidade, tá lá em Americana, vazou pra lá, tá lá e só falou o seguinte, pro Yuri apagar todo esse tipo de conversa no celular dele ou para ele pegar o celular dele e jogar fora”, diz transcrição presente na denúncia.

    Segundo a promotoria, o interlocutor se referia a mensagens em que Yuri afirmava para pessoas de seu círculo íntimo que pretendia matar Carmen.

    “Falei, mano, pega o seu celular e quebra seu celular, joga fora, não deixa nada no seu celular, nada, nada, nada, nada como prova, entendeu? E eu falei mano, apaga todos os tipos de conversa minha, com a sua mãe, com a Lara, com todo mundo que você falou que você ia matar essa Carmem, você apaga, pelo amor de Deus, não deixa nada no seu celular”, diz outro trecho.

    No dia seguinte, Yuri foi a um encontro de motos que ocorria em Ilha Solteira, orientado por Roberto para criar um álibi, e formatou seu celular. Em seguida, destruiu completamente o objeto.

    Roberto, por sua vez, excluiu os registros de chamadas e conversas do WhatsApp anteriores ao dia 16 de junho, incluindo o contato de Paulo.

    MPSP denuncia três suspeitos

    Para a promotora Laís Deguti, é evidente que Yuri e Roberto praticaram feminicídio contra Carmen, também com finalidade de garantir impunidade por crime anterior. Os dois, juntamente de Paulo Henrique, ocultaram o corpo da vítima, além de terem alterado a cena do crime e destruído provas.

    Com isso, a promotoria denunciou Yuri e Roberto por feminicídio com a qualificadora de ter cometido o crime para assegurar a execução, impunidade ou vantagem de outro crime. Eles também foram denunciados por ocultação de cadáver e fraude processual.

    Paulo Henrique foi denunciado por ocultação de cadáver e fraude processual. Deguti destacou que ele fugiu para Americana após o cometimento do crime, e pediu pela prisão preventiva do suspeito. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) ainda deve analisar os pedidos.