O número de unidades socioeducativas com casos de tortura cresceu, entre julho e agosto deste ano, em comparação com os bimestres anteriores, segundo dados nacionais atualizados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O ano começou com registros em duas instituições no país, mas o total subiu para nove até o quarto bimestre de 2025. Nesses locais, identificou-se indícios de tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes contra menores infratores.
O levantamento também mostra que, até o quarto bimestre, há registro de 10 unidades com profissionais denunciados por prática de tortura, o mesmo índice do período anterior. Apesar da estabilidade recente, o número ainda representa aumento em relação ao início do ano, quando o número de unidades com denúncias estava em cinco.
Os dados indicam que, até o quarto bimestre, 378 unidades tinham fluxos e procedimentos administrativos para apurar tortura contra adolescentes. No mesmo período, apenas nove tinham “protocolo (normativa) de uso de força”. No entanto, as medidas não se traduzem de forma efetiva no fim da violência institucional.
Nesse sentido, o juiz Glauber Bittencourt, da Vara de Execuções de Medidas Socioeducativas, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), explica que a prática de tortura constitui gravíssima forma de violação de direitos humanos. “Não apenas afronta o Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA], como também representa ofensa direta à Constituição e violação aos compromissos assumidos pelo Brasil no âmbito internacional.”
Os funcionários dos centros de internação devem respeitar e proteger a dignidade humana e os direitos humanos fundamentais de todos os adolescentes, em quaisquer circunstâncias, conforme as Regras das Nações Unidas para a Proteção de Adolescentes Privados de Liberdade (Regras de Havana).
“A prática de tortura e maus-tratos em unidades socioeducativas gera responsabilidade individual do agente, por ação ou omissão, nas esferas civil, administrativa e criminal. Acarreta também a responsabilidade do Estado pela reparação dos danos à vítima e seus familiares. Em caso de omissão ou negligência do Estado brasileiro na investigação dos fatos, na efetiva punição dos envolvidos ou na proteção, reparação e reabilitação das vítimas, há a possibilidade de o país ser responsabilizado no âmbito internacional”, aponta o magistrado.
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As unidades socioeducativas devem ter profissionais capacitados que adotem medidas restaurativas
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Total de unidades socioeducativas em 2025 com indicativos de tortura ou outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes
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Ocupação atual de unidades socioeducativas
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A maior parte da ocupação de unidades socioeducativas é de garotos
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CNJ não revela quais unidades têm indicativos de tortura
O Metrópoles pediu, via Lei de Acesso à Informação (LAI), que o CNJ especificasse quais são as unidades socioeducativas em que foram identificados indicativos de tortura. No entanto, o órgão se negou a prestar o esclarecimento.
Após recursos apresentados pela reportagem, o CNJ emitiu um despacho no qual manteve o sigilo. O órgão argumentou que o detalhamento pode “colocar em risco a segurança e integridade dos adolescentes internados nas referidas unidades”.
“As informações solicitadas dizem respeito a investigações em curso, cujo sigilo é essencial para garantir a efetividade dos procedimentos investigativos e a proteção das pessoas envolvidas”, alegou Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi, coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas.
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Violações de direitos
Um dos obstáculos para que as medidas sejam cumpridas sem violações de direitos é a prevalência do entendimento comum de que o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo é uma política de segurança pública e de defesa social, segundo o juiz Glauber Bittencourt. O magistrado assegura que, na verdade, deve ser visto como um instrumento destinado à promoção, proteção e defesa dos direitos humanos e fundamentais.
“O desafio é fazer com que reste superada a ideia de que a unidade socioeducativa seria um mero espaço para privação de liberdade, identificando-a como um local voltado para o aprendizado, o desenvolvimento pessoal, a criação, a recuperação ou o fortalecimento dos vínculos com a família e com a comunidade”, diz o especialista.
O magistrado expõe ainda a oferta insuficiente de atividades pedagógicas e de profissionais capacitados. Ele destaca que há ações judiciais em andamento para exigir do estado o cumprimento de direitos básicos dos adolescentes infratores, como o acesso à educação.
Em episódios de identificação de tratamentos degradantes nas unidades socioeducativas, em audiência ou durante qualquer outro ato processual, ou em meio a visita a unidade socioeducativa, há diretrizes do CNJ que estabelecem o adequado registro e a documentação do fato descrito.
“[É preciso] colher o depoimento da vítima e de eventuais testemunhas, providenciar a realização de exame de corpo de delito, requisitar ao Poder Público livros, prontuários, fichas e outros documentos relativos ao acompanhamento do adolescente e da ocorrência descrita, incluindo imagens de câmeras de segurança”, informa Bittencourt.
O Judiciário pode encaminhar a vítima para atendimento médico e psicossocial especializado. Além disso, há a possibilidade de se determinar a transferência do adolescente para outra unidade, assim como a suspensão da execução da medida socioeducativa ou até a substituição ou extinção, a depender da gravidade do caso.
“Para a responsabilização dos envolvidos, instaura-se procedimento para apuração de irregularidades e, caso constatada a prática da conduta ilícita por parte de dirigentes, gestores, operadores ou prepostos da entidade de atendimento, aplicará as sanções cabíveis, que podem ser advertência, afastamento provisório ou definitivo dos agentes responsáveis ou até mesmo o fechamento de unidade ou interdição de programa”, elucida o juiz.
Ao tomar conhecimento de tortura a menores infratores, o juiz deve comunicar o fato ao Ministério Público (MP). A partir disso, promove investigação da responsabilidade civil e penal dos envolvidos. Também deve ser informado o órgão correcional ao qual o agente público estiver vinculado, para que promova a responsabilidade administrativa, e a Defensoria Pública, para assistência jurídica e busca por eventual reparação civil.
Ocupação das unidades socioeducativas
Atualmente, de acordo com os dados do CNJ, as unidades socioeducativas do país reúnem 10.957 adolescentes, diante de uma capacidade total de 18.114 vagas. Do total, 4.280 jovens infratores do sistema estão em São Paulo. No país, a taxa de ocupação é de 60,49%.
A maioria dos menores infratores (71%) está em regime de internação, enquanto 17,5% cumprem internação provisória e 9,6% estão em semiliberdade. O perfil é majoritariamente masculino: 96,3% dos internos são meninos e apenas 3,7% são meninas. Do total, a maioria (74,3%) é de pretos e pardos.
Com informações bimestrais a partir de 2023, os dados integram um painel lançado neste ano. A plataforma inédita reúne os resultados das inspeções judiciais realizadas nas unidades de internação cadastradas no Cadastro Nacional de Inspeção de Unidades e Programas Socioeducativos (CNIUPS) por meio de informações do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase).
Combate à violência institucional
Ações estruturais podem ser implementadas para impedir os maus-tratos contra menores infratores. Entre elas, estão a ampliação do número de servidores nas unidades socioeducativas e sobretudo a formação inicial e continuada direcionada dos funcionários com foco em práticas didáticas e não violentas.
“É necessário o investimento em instrumentos que garantam a apuração célere, imparcial e eficaz de notícias de tortura e maus-tratos ocorridas nas unidades socioeducativas no âmbito administrativo, como a criação de fluxo interinstitucional entre os poderes Executivo e Judiciário, com a participação do Ministério Público e da Defensoria Pública”, avalia Glauber Bittencourt.
Atualmente, segundo o magistrado, está consolidado o entendimento de que as medidas socioeducativas não têm finalidade retributiva; ou seja, não são concebidas como simples forma de sanção por ato ilícito. O caminho mais recomendado são as práticas restaurativas, que focam na resolução de conflitos por meio da reparação de danos e da responsabilização consciente.
“As medidas socioeducativas são instrumentos de proteção e promoção de direitos, devendo primar pela conscientização do adolescente, sua educação e formação e pelo fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, a fim de que consigam retornar ao convívio social em condições de não reincidir na prática de atos ilícitos”, esclarece o especialista.
