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    Um tripé diabólico (por Mary Zaidan)

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    Em raro mea culpa por um erro cometido, o presidente Lula acertou ao corrigir a absurda fala de que “traficantes são vítimas de usuários”, dita durante entrevista em Jacarta. O que ele  pretendia era expor uma obviedade: não há traficante sem consumidor. O resto é buchicho de rede social. Com menor repercussão, a derrapada de admitir sem meias palavras que governa só pensando em se reeleger foi mais séria – e sem qualquer retificação -, contribuindo para a normalização do déficit moral que o país vivencia há tempos.

    “Daqui a quatro anos, a gente vai ter gente nova disputando as eleições. Quero deixar o país preparado”, disse Lula ao confirmar sua candidatura para um quarto mandato. “Não vou ser o presidente da República que está pensando na sua reeleição. Vou ser o presidente que vai estar pensando em governar este país por quatro anos e deixá-lo tinindo, tinindo.”

    A frase é de todo torta: Lula depõe contra si, escancarando que como o objetivo desta sua passagem pelo Planalto é a reeleição, nem mesmo ele crê que seu atual governo será capaz de melhorar o país – de deixá-lo “tinindo”.

    Até o habitante de Plutão sabe que Lula não disse novidade. Reeleição dita as ações de governos. A gravidade é o detentor do cargo máximo do país achar absolutamente justificável reivindicar um novo mandato porque no atual seu “pensamento” está no esforço para se reeleger. Isso vale também para governadores e prefeitos.

    Alguns dirão que a culpa é do instituto da reeleição, que engole um mandato em função do próximo. Balela. Governantes fazem força idêntica para eleger sucessores quando eles não podem disputar o pleito. Dilma Rousseff é exemplo disso. Sem jamais ter disputado um voto anteriormente, elegeu-se Presidente da República pelo empenho do padrinho em projetos eleitorais. Transformou a sua pupila em “mãe do PAC” mesmo sem o Programa de Aceleração do Crescimento decolar. Ou seja, acabar com a reeleição é fingir solução para um problema mais complexo e arraigado na política brasileira: o uso da máquina para eleger, reeleger e, não raro, encher os bolsos.

    A corrupção é mais uma face da permissividade nacional. Causa indignação, mas navega entre os bordões do “rouba, mas faz” ou do “todo mundo rouba”, como se isso fosse regra.

    Governos partilham cargos com aliados que os disputam a tapas não só para empregar correligionários. Na prática, não é pouco dinheiro do pagador de impostos que tem destino não sabido. Parte dele, o das emendas secretas ou via Pix, por exemplo, destinadas por parlamentares para prefeituras que usam os recursos a seu bel prazer, sem qualquer controle, está sob investigação do Supremo Tribunal Federal, mas continua se multiplicando. Outras correm no ralo das licitações fantasmas e obras inacabadas.

    Ao déficit moral e à corrupção soma-se a desfaçatez, dando forma a um diabólico tripé praticamente institucionalizado.

    Em um recorte recente, o país assistiu a tentativas de perdão prévio a crimes cometidos por políticos, a tal PEC da Blindagem, um ano após o Congresso ter aprovado a suspensão de multas e o refinanciamento de dívidas de partidos políticos, anistiando infrações eleitorais de até R$ 23 bilhões. A matéria, ao contrário do que ocorreu com a PEC da Bandidagem, cujo repúdio levou multidões às ruas, foi aprovada sem qualquer grita. No governo, o troca-troca de cargos para garantir uma base mínima no Parlamento desmascarou qualquer tentativa de dizer que fulano ou sicrano está no cargo x ou y por competência. Até o Supremo caiu na esparrela. Na semana passada, a Corte formou maioria para legalizar o nepotismo, autorizando que governantes possam nomear parentes para cargos políticos.

    Nada disso é desconhecido. O perturbador é ver a normalização do escárnio, o inconcebível ser comum, banal. Um vale tudo não ficcional de gente que não dá a mínima bola para a audiência.

     

    Mary Zaidan é jornalista