A voz anônima de uma atendente de restaurante chegou aos ouvidos de Caetano Veloso. “A vida é amiga da arte”, cantava a senhora ao microfone para uma sala quase vazia, com uma toca de plástico sobre a cabeça. “É a parte que o sol me ensinou”.
A imagem da improvável e fascinante cantora circulou pelas redes sociais, captada por alguém que ainda fez troça de sua idade – a “vovozinha do restaurante”. Mas conquistou tantos corações que chegou ao autor daquela canção, Força Estranha.
Deitado na cama, com o celular nas mãos, Caetano se emocionou. “Ela canta lindo”, disse ele. “É a mesma canção que cantei com meus filhos na televisão”.
Pouca gente saberá, por enquanto, quem é a cantora. Nem onde fica o restaurante, onde já não havia quase ninguém quando ela começou a cantar. Mas não importa. Ela mostrou ali, naquela rara simplicidade, como bate hoje o coração do Brasil.
Um Brasil que anda esquecido de si mesmo. Que se deixou mergulhar em brigas de egos, disputas políticas e guerras ideológicas que parecem ter saído do túnel do tempo.
Talvez de um século atrás, quando os nazistas começaram por atacar os artistas e acabaram levando o mundo inteiro a uma grande guerra.
Naquela Alemanha de antes de Hitler, Berlim era uma espécie de Nova York, que atraía artistas e intelectuais de todo o mundo. O cinema era revolucionário, a música inovadora, a arquitetura e a arte se uniram para criar o movimento Bauhaus.
Tudo foi proibido depois que os nazistas chegaram ao poder. Nazistas que inspiraram o famoso discurso do primeiro responsável pela cultura no governo de Jair Bolsonaro.
Aqueles quatro anos foram um tempo de ataque aos artistas. Na visão dos mais fiéis bolsonaristas, todos eram sanguessugas patrocinados pela Lei Rouanet. Embora os protegidos cantores sertanejos tenham feito fortunas com shows pagos por prefeituras alinhadas com a direita.
A senhorinha do restaurante não ganhou nada ao cantar. Talvez venha a ficar famosa e apareça na televisão. Mas também isso não importa. O que importa é o que ela tem por dentro e canta, mesmo que para ninguém.
Não terá sido aleatória a escolha da canção. “Eu vi muitos homens brigando, ouvi seus gritos”, escreveu Caetano. “Estive no fundo de cada vontade encoberta. E a coisa mais certa de todas as coisas não vale um caminho sob o sol”.
No horizonte da política a imagem é outra. As grandes certezas imutáveis dividiram as pessoas, os amigos, as famílias. E até hoje há gente que aposta na radicalização, como a abrir caminho a uma instabilidade que soe como convite ao autoritarismo.
Nada disso parece mesmo valer um caminho sob o sol. O Brasil está povoado de pessoas simples como aquela cantora, com muita sensibilidade e vontade de viver em paz, em um país que busque reduzir a pobreza, a desigualdade e a violência.
É para toda essa gente que os futuros candidatos a presidente devem um novo projeto. Algo mais do que um necessário projeto nacional de desenvolvimento, que permita mais oportunidades a todos e proteção social a quem mais precisa.
Esse projeto também deve incluir a busca de uma nova identidade brasileira, para além da guerra ideológica que ainda ameaça contaminar as eleições de 2026.
O Brasil pode vir a se mostrar a si mesmo a ao mundo como um país que une a liberdade à busca do desenvolvimento, à proteção de sua natureza, ao combate à desigualdade e ao estímulo a suas mais diversas culturas.
Para que muitas outras senhorinhas possam soltar sua voz tamanha.

