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    Beijos, ultraprocessados e orixás

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    “Mamãe”, gritou a criança na porta de casa, era o sinal para a mãe simular seu meme favorito. Abriu a porta e perguntou: “E aí como foi seu dia, aprendeu tudo?” e a filha respondeu: “Acho que não, porque amanhã tem que voltar de novo”,  respondeu a filha de 6 anos, que sentou no chão de tanto rir. A mãe sorria com a verdade de quem vê a filha feliz, mesmo sendo a quinta vez seguida que Elis repetia o meme.

    Tatiana chegou um pouco depois, abrindo e batendo a porta com a força sutil de um desgosto, coisas que só mães alcançam perceber. A adolescente foi contando, “Tomei uma advertência porque briguei com a Joana”, “Que aconteceu”, “Ela me viu beijando o Endrigo e veio tirar satisfação”, “Eu falei pra você conversar com ela, vocês vão perder a amizade”, “Ela que morra”, “Não é assim que funciona! Não se brinca com a lealdade das amigas! Eu falei pra você falar com ela, se explicar, ela ainda tá apaixonada, é sempre ruim quando a fila anda, podia ser com você, tá entendendo?”

    “Você sabia que a humanidade beija a 21 milhões de anos?”, lançou a menina com a habilidade de mudar de assunto trazendo uma informação curiosa, “Não estou falando disso” tentou a mãe, “Eu vi em um estudo, como chimpanzés e gorilas se beijam, os pesquisadores acham que é um hábito ancestral. Mas não se sabe se já era romântico ou era só entre amigos e família” e Tatiana deu um beijo no rosto da mãe e se afastou. A mãe cedeu a artimanha da filha com um olhar que dizia, ‘mais tarde você não me escapa’. …

    O almoço não estava pronto e a mãe sentia uma pequena dor ao misturar a salsicha com arroz e molho de tomate. Lembrou da  roda de conversa sobre ultraprocessados com o pessoal da Unidade de Saúde, sentia culpa, não tinha tempo, as filhas ajudavam mas era ela a mãe, carregava a casa, tinha que carregar a casa. Salsicha, bolachas, refrigerantes e salgadinhos eram veneno e sabia, mas esse hábito de morte habita a casa dos mais pobres. É a necessidade silenciada pelo mais barato. Não disse nada quando Elis pegou uma bolacha no armário.

    Alice abriu a porta com violência, chamava a atenção como na abertura de um show, Elis enxergou as luzes apagadas e os holofotes sobre ela. A criança comia a bolacha e parou, a mãe abandonou a panela. “Puta zona na escola hoje”, exclamou Alice, professora iniciante que estagiava em uma Emei ao lado da casa.

    “Lembra que eu falei que um pai fez um escândalo porque sua filha fez um desenho de um orixá, que foi na escola e rasgou o mural com as atividades das crianças? Teve reunião hoje pra discutir o problema e o que o cara fez? Chamou a PM! Os PMs entraram no colégio com metralhadora e ameaçaram a diretora, gritaram com professores e alunos, foi horrível tá todo mundo assustado! Tudo por causa de uma aula que faz parte do currículo!”

    A primeira imagem que surgiu na cabeça da mãe foi o rosto de Deisi, a diretora da escola, seu semblante entristecido com as dificuldades na relação com os pais dos alunos, potencializada pelo fim de uma relação tóxica. “Alice termina o almoço que vou ver a Deisi”, só pegou a bolsa e se dirigiu à porta. Tatiana berrou: “eu vou com você”. As duas saíram. Alice não teve dúvida: pegou umas bolachas, agarrou Elis e saiu pra rua. Era uma família decidida a defender uma mulher.