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    Com famosos e tretas, CPI dos Pancadões vira fábrica de virais em SP

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    “Eu queria pedir um espaço para mandar uma letra […] e talvez te ajude a entender”, afirmou o rapper Salvador da Rima, durante a CPI dos Pancadões, na Câmara Municipal de São Paulo. “Vou indeferir”, respondeu o presidente da comissão, o vereador Rubinho Nunes (União). Mesmo assim, Salvador começou a cantar “Era sóóó mais um Silva”, trecho de funk clássico dos anos 1990, quando seu microfone silenciou. “Tá cortado”, finalizou Rubinho.

    A reunião da comissão era assistida por quase 5 mil pessoas simultaneamente, um recorde para os trabalhos na Casa que, muitas vezes, são acompanhados por poucas dezenas de espectadores. Publicado há duas semanas, o vídeo já alcançou 290 mil visualizações só no YouTube, sem considerar os incontáveis cortes de trechos da reunião marcada pelo embate entre o rapper e o vereador do União Brasil.

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    A CPI dos Pancadões, teoricamente criada para combater um problema real de perturbação de sossego na cidade, furou a bolha da Câmara e tem ficado mais conhecida nas redes pelas tretas entre os artistas e influencers convocados para depor e vereadores da comissão — principalmente o presidente Rubinho Nunes.

    Ex-integrante do Movimento Brasil Livre (MBL), Rubinho foi reeleito após trocar a base do prefeito Ricardo Nunes (MDB) pelo apoio a Pablo Marçal (PRTB) no ano passado. Agora, provável candidato a deputado federal no ano que vem, ele aposta no combate aos bailes funk como uma das plataformas de seu mandato.

    O advogado na CPI achou que era o dono da sessão…

    Levantou a voz, tentou dar carteirada, e saiu com um enquadro jurídico e um choque de realidade! pic.twitter.com/EKiisNfo67

    — Rubinho Nunes (@RubinhoNunes) October 16, 2025

    CPI “caça-likes”

    A CPI presidida por ele, porém, é criticada por supostamente servir como “caça-likes” sem buscar soluções concretas para resolver o problema que aflige as noites da população da periferia. Passatempo para jovens em bairros sem opção de lazer, os pancadões tomam ruas inteiras madrugada adentro, com paredões de som que impedem o descanso de milhares de pessoas em bairros da periferia. Os encontros também são marcados pelo consumo de bebidas alcoólicas e drogas ilícitas.

    Por vezes, o assunto parece secundário na CPI e os participantes deixam a imaginação voar. Um dos cortes mais famosos da comissão mostra uma discussão entre o professor e influencer Thiagson e Rubinho Nunes. O vereador pede para o convidado citar conceitos e harmonia criados por artistas de música clássica como Bach e Debussy, mas tem sua pronúncia corrigida pelo professor.

    “Falar em harmonia, falar em Bach, sendo que a pronúncia é ‘bá’, falar Debussy, sendo que a pronúncia dele é ‘debsí’, além de ostentar um desconhecimento típico da ignorância […]. O Peter Burke estudou a ignorância, ele percebeu isso, a ignorância tem essa capacidade de ostentar, os senhores teriam muito a contribuir com o estudo do Peter Burke”, disse Thiagson.

    Perfis ligados ao hip-hop passaram a divulgar cortes de Thiagson, Salvador e Chavoso da USP, outro influencer que depôs na CPI, nas redes. Rubinho, outros vereadores e perfis da direita, por sua vez, contra-atacaram.

    “Hoje na CPI dos Pancadões na Câmara Municipal de São Paulo, Thiagson, que estudou música na USP, estava dizendo que o cânone da música clássica era composto apenas de pessoas brancas, ao que o vereador @RubinhoNunes rebateu lembrando de Carlos Gomes, o maior compositor de ópera brasileiro, que era negro”, escreveu nas redes o cineasta conservador Josias Teófilo, cuja empresa presta serviços de assessoria de imprensa ao vereador.

    O divo Thiagson macetou tão bem macetado aqui que o Robinho Nunes deve estar procurando o caminho de casa até agora 👇👇 pic.twitter.com/rFiXx4LPZb

    — Rê (@crushdobbb20) October 18, 2025

    A CPI começou a bombar mais no fim de agosto, quando Rubinho ameaçou dar voz de prisão para o sociólogo Thiago Torres, conhecido como “Chavoso da USP”. O vereador perguntou ao influencer se existiria crime organizado na periferia, ao que ele respondeu que o crime ocorre em todo lugar, “inclusive dentro dessa Casa”. O vídeo da Câmara teve mais de 200 mil visualizações no YouTube.

    🚨 URGENTE! Chavoso da USP afirmou na CPI dos Pancadões que “havia gente dentro da Câmara ligada ao crime organizado”.

    Quando foi cobrado a dizer nomes, não sustentou a acusação e quase saiu PRESO! pic.twitter.com/vEsunIrKyv

    — Rubinho Nunes (@RubinhoNunes) August 28, 2025

    Conduções coercitivas

    Os membros da CPI têm aprovado conduções coercitivas dos convocados que não comparecem aos trabalhos reiteradamente – um dos alvos foi o influencer Bruno Alexssander Souza Silva, o Buzeira, que está preso. Outro alvo de um pedido do tipo foi Giliard Vidal dos Santos, filho da influenciadora digital Deolane Bezerra. Já o youtuber Felca, que viralizou com um vídeo sobre adultização das crianças, foi convidado a depor.

    Nenhuma das pessoas citadas nesta reportagem é organizadora de bailes funk, mas todos eles têm uma coisa em comum, milhões de seguidores nas redes sociais, e foram chamados tanto por parlamentares de direita quanto de esquerda. Parte desse público entra pela primeira vez num vídeo ao vivo de uma CPI para comentar o que se passa por lá, como fazem nas lives dos artistas.

    Caça ao funk

    A CPI também ouviu alguns donos de adegas, pessoas apontadas como organizadoras de bailes e fiscais da prefeitura, mas segue insistindo em convocações de celebridades com pouca ou nenhuma relação com as festas, o que gera infinitamente mais engajamento e também acusações de que se trata de instrumento ideológico de perseguição à cultura periférica.

    O combate ao funk e à cultura da favela virou uma bandeira de parte da direita brasileira. A CPI dos Pancadões é majoritariamente formada por vereadores conservadores, com policiais como o ex-PM da Rota Sargento Nantes (PP) e o agente Kenji Ito (Podemos), o youtuber provocador de esquerdistas Lucas Pavanato (PL) e a vereadora do partido Novo Cris Monteiro.

    Junto com Amanda Paschoal (PSol), a vereadora Luna Zarattini (PT) é uma das exceções da esquerda na comissão. “Se era pra buscar o combate à perturbação do sono, do sossego, principalmente nas periferias, mas na cidade como um todo, a CPI até hoje não apresenta nenhum acúmulo sobre esse processo”, diz Luna.

    “O que vimos nas últimas semanas foram convocações de artistas que estão produzindo funk, mas que sequer tem relação com os bailes funk. Esse é um objetivo e uma forma que a extrema-direita faz política: eles fazem política através do medo, através das paixões, através dessa busca incessante de engajamento. Não precisa ter a ver com a verdade.”

    Luna critica o fato de que a comissão quase não teve audiências com o poder público até o momento e diz que nas próximas sessões vai questionar o cronograma de trabalho da CPI.

    “Por que é tratado de forma diferente o que acontece no Anhangabaú, que é concedido para iniciativa privada, com regras a serem seguidas, mas que tem festas até altas às horas da noite, da madrugada, com também uso de substâncias, sem fiscalização do poder público? Nós questionamos o que seria esse pancadão do Anhangabaú e isso não foi levado à frente. Na verdade, [isso mostra que] existe uma perseguição de gêneros musicais e uma forma de você agir nas periferias da cidade de São Paulo”.

    O Metrópoles questionou Rubinho sobre as críticas a respeito da CPI. Ele respondeu que era uma “percepção completamente enviesada e míope” e “narrativa da oposição”.

    “A CPI investiga os pancadões, a narcocultura e toda a problemática que está atrelada aos bailes — incluindo a ligação com o tráfico de drogas e o crime organizado. Se esses elementos que vocês chamam de artistas foram chamados, é porque houve necessidade dentro da apuração. Todos os nomes convocados têm relação com o objeto da investigação. As convocações seguem respaldo legal e, caso alguém não compareça, o procedimento natural é a condução coercitiva, como previsto em lei”, afirmou.

    Na última sessão da CPI, seguindo a linha comentar os assuntos do momento, os vereadores da direita usaram a comissão para exaltar a megoperação no Rio de Janeiro que deixou 121 mortos.

    Vice-presidente da comissão, Kenji Ito parabenizou a gestão do governador fluminense Cláudio Castro pela operação e pediu um minuto de silêncio em homenagem aos quatro policiais mortos.

    “Queria, através dessa CPI, que apura os pancadões, parabenizar o governo do estado do Rio de Janeiro que está fazendo uma limpeza dos bandidos ali da região. Uma limpeza que já deveria ter sido feita há muito tempo. […]  E, de antemão, também queria pedir, um minuto de silêncio para os policiais, as vítimas policiais que tiveram a vida ceifada nessa operação”, disse o vereador.

    Rubinho, então, acatou o pedido dizendo que o minuto de silêncio era “exclusivamente para as verdadeiras vítimas”. Um dia antes, ele e outros parlamentares da direita protagonizaram um embate contra vereadores da esquerda que defenderam um minuto de silêncio para todas as vítimas da operação, durante uma sessão na Câmara.

    Enquanto Kenji, Rubinho e Nantes falavam sobre a operação no Rio na última quinta-feira (30/10), celulares filmavam os três. A cena do minuto de silêncio na CPI dos Pancadões também virou um corte nas redes sociais.