Brasília nasceu moderna. Não apenas na arquitetura que ergue palácios sobre pilotis ou nas janelas horizontais que recortam o horizonte, mas também no modo como se vivia: cadeiras de madeira que abraçavam o corpo, mesas esculturais, curvas suaves que se integravam ao concreto recém-moldado. Para quem cresceu na capital, o modernismo não era teoria, era cotidiano.
Dionizius Balduino era uma dessas crianças. “A gente via toda Brasília construída e com esses móveis. Era parte da paisagem”, lembra.
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“Tem aquele valor afetivo, não é? Eu via na casa de parentes, na minha casa, quando ia pra escola, quando eu ia com minha mãe a algum prédio público”. A presença do mobiliário modernista fazia sentido antes mesmo de existir o vocabulário para descrevê-lo.
Confira entrevista e detalhes da galeria:
Em Brasília, é impossível você não se apaixonar pelo modernismo, pelo que é o móvel moderno, pelo que é… O que é a nossa cidade, o que é Brasília.
Dionizius

Quando memória vira destino
Foi na faculdade de Arquitetura, em Brasília, que Dionizius conheceu Carmem. Os dois se aproximaram pelo olhar atento às formas, às texturas e à forma como os objetos contam histórias. Enquanto projetavam maquetes e discutiam Brasília como cidade e conceito, ele já montava uma pequena coleção de móveis modernistas — inicialmente sem método, apenas por paixão.
“Nos anos 1990, começou a ter muita troca de mobiliário do governo e muitas autarquias sendo fechadas. As coisas iam ser vendidas, ou jogadas fora, e eu achava um crime. Não tinha apego, não tinha valor. Mas a estética não me deixava jogar fora. E aí fui comprando.”
Quando abriram, juntos, o primeiro escritório, em 2013, o mobiliaram com os itens da coleção. Veio, então, o primeiro sinal de que ali havia algo maior.
“As pessoas vinham perguntar das peças. Queriam saber de onde vinha, quem fez, quem restaurou”, conta Dionizius. O mobiliário chamava mais atenção que o próprio trabalho de arquitetura. “A gente notou o interesse das pessoas nas peças. E foi quando tivemos o insight de criar o Studio Aquiles.”
Nasce o Studio Aquiles
No início, a empreitada funcionava em Taguatinga: um “mercadinho de pulga”, como Carmem define, misturando móveis, arte popular, objetos garimpados pelo Brasil. “Era tudo o que a gente gostava. Ainda não existia um refinamento, uma curadoria definida.”
Com o tempo, a paixão virou pesquisa. Eles mergulharam nos nomes, nas madeiras, nas fábricas, nos processos, até compreender o modernismo brasileiro não só como estética, mas como cultura material, documento histórico e identidade de país.
O movimento natural para a galeria
O acervo cresceu. Veio o galpão, depois o reconhecimento entre colecionadores e arquitetos. E o passo seguinte aconteceu quase sozinho: o Studio Aquiles virou Aquiles Gallery, hoje instalada no SIA, em um espaço que se afasta da lógica comercial e se aproxima da ideia de casa.
A galeria não é para olhar — é para viver.
“É para sentar, tocar, ouvir o som da madeira”, explica Carmem. “A gente acredita que o móvel se revela na experiência.”
Ali, não há vitrine. Há convivência. O espaço é organizado como ambientes completos, pensados para que o visitante experimente o móvel com o corpo, e não apenas com o olhar. Sentar, sentir o peso da madeira, perceber o encaixe, o conforto, o gesto pensado no desenho. Cada peça chega rastreada, estudada e restaurada com cuidado, do garimpo à confirmação de autoria.
“Quando alguém leva uma peça daqui, ela não está levando decoração. Está levando cultura”, diz Dionizius. É uma experiência de casa, não de loja.



Aquiles Gallery
Wey Alves/Metrópoles
Aquiles Gallery
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Brasília como fonte, memória e matéria-prima
Cerca de 80% do acervo da Aquiles Gallery foi garimpado na própria Brasília.
Desde os anos 1960, a cidade foi equipada com mobiliário modernista. Era o uso cotidiano do que hoje o mundo reconhece como raridade.
Mas esse patrimônio quase se perdeu.
“Durante os anos 90 e 2000, muita coisa foi sucateada ou descartada. Peças icônicas sendo leiloadas em lotes, vendidas como sucata. A gente via aquilo e pensava: se ninguém fizer nada, isso desaparece”, diz Dionizius.
Eles começaram a comprar para preservar. E preservar virou responsabilidade.
Restaurar para continuar vivo
A oficina de restauro é um dos motores da Aquiles Gallery. O trabalho é minucioso, paciente e respeitoso. O objetivo é devolver estrutura, dignidade e vida às peças.
“Uma cadeira é um documento histórico, mas é também um objeto para usar. A gente acredita no móvel vivo”, afirma Carmem Balduino.
São peças que atravessam gerações. Não por acaso, são feitas de madeira nobres e altamente valorizadas pela beleza, durabilidade e resistência. O mobiliário criado por mãos que desenharam pensando no corpo e na casa como extensão da vida.
Os nomes que moldaram o Brasil
Na galeria, encontram-se peças de Sérgio Rodrigues, Jorge Zalszupin, Oscar Niemeyer, Lina Bo Bardi, Carlo Hauner, Jean Gillon, Geraldo de Barros e muitos outros nomes que construíram a linguagem visual de um país que, por um tempo, ousou ser moderno não só no discurso, mas também no gesto.
O mobiliário também segue o princípio do modernismo, a forma e função, e são peças que resistem mesmo ao tempo
Algumas peças são raridades, como a Mole, de Sérgio Rodrigues, mantida no estado original de época.

“São cada vez mais difíceis de encontrar. Quando temos a oportunidade de preservar uma peça assim, sentimos que estamos cuidando de uma memória coletiva”, diz Carmem. “São peças que já têm mais de 60 anos. E não só permanece a qualidade, mas a beleza, o design e a funcionalidade também”, explica, “as peças trazem conforto, é possível sentir a diferença da ergonomia. Você consegue ficar muito mais tempo num móvel modernista do que nos atuais.”
O olhar internacional que reacendeu o nacional
Nas últimas décadas, o mercado internacional voltou-se ao modernismo brasileiro e, assim, o Brasil olhou de volta para si.
Peças nacionais passaram a ocupar galerias em Nova York, Milão, Paris. E aquilo que estava guardado, ou esquecido, voltou a ser reconhecido como arte.
“Quando o mundo começou a prestar atenção, o Brasil se lembrou do que tinha. Sempre esteve aqui”, diz Dionizius.
Patrimônio vivo de Brasília
A relação da Aquiles Gallery com o design modernista também passa por projetos públicos de grande importância. Em 2017, Dionizius integrou a equipe responsável pela catalogação do mobiliário do Palácio da Alvorada. O trabalho ajudou a identificar peças originais, organizar o acervo e orientar sua preservação.
Mais recentemente, a galeria esteve presente na reinauguração da sala Villa-Lobos, no Teatro Nacional Claudio Santoro, para o Metrópoles Catwalk, contribuindo com consultoria e acervo para a ambientação do espaço. A proposta não era apenas compor o cenário, mas reconectar o teatro à memória estética de Brasília.

Esse movimento acompanha uma mudança maior na cidade. Após os eventos de 8 de janeiro, quando o patrimônio público foi danificado, Brasília passou a olhar com mais atenção para o que possui. “As pessoas viram que não eram só cadeiras e mesas quebradas. Eram documentos da nossa história material”.
Para ele, Brasília é um grande museu a céu aberto.
A capital sempre conversou com o modernismo como linguagem total: arquitetura, paisagem e mobiliário.
“A gente não consegue imaginar esses espaços com móveis coloniais, por exemplo. A cidade foi pensada para ser moderna, e o mobiliário precisava falar a mesma língua. Tudo era parte de um mesmo projeto de país”, afirma Dionizius.
Raridade que não se repete
Uma parte essencial do acervo modernista brasileiro tornou-se, hoje, irreplicável. Isso porque grande parte das peças foi produzida em madeiras nobres como jacarandá, cujo uso é atualmente protegido por lei. Muitas das técnicas de marcenaria também foram transmitidas de forma artesanal, de mestre para aprendiz, e não chegaram à produção industrial.
Além disso, muitas peças foram exportadas ao longo dos anos, especialmente nos períodos em que o design brasileiro começou a ser valorizado no exterior. Isso fez com que parte importante do mobiliário modernista original deixasse o país — e, com ela, fragmentos da nossa história material e consciência nacional.
Hoje, são pouquíssimos os profissionais autorizados a reconstruir ou restaurar peças desse período, tanto pela restrição das matérias-primas quanto pelo nível de conhecimento necessário.
Por isso, cada peça que chega à Aquiles Gallery não é apenas um objeto de design, é uma testemunha de época. Algo que carrega tempo, gesto e memória.

Aquiles: o cachorro que se tornou símbolo
O nome da galeria não veio do modernismo. Aquiles não é arquiteto, designer ou patrono, mas um cão. Um dogue alemão, gigante, imponente e delicado, o cachorro cresceu entre os móveis sem nunca derrubar uma peça. Aquiles viveu 15 anos ao lado do casal, atravessando faculdade, casamento, filho, mudanças de vida. Sempre respeitando o mobiliário, como se entendesse a importância daquilo.
“Ele fazia parte da casa. Ele estava sempre ali”, conta Carmem.
O desenho do cachorro virou marca. Não como mascote, mas como afeto.
Casa é memória — e memória é casa
Ao entrar na Aquiles Gallery, entende-se que o modernismo ali não é tendência nem fetiche estético. É cultura que se senta, que descansa, que recebe, que permanece.
“Porque construir casa é fácil, agora construir lar é difícil”, afirma Dionizius. “Você pode ir num palácio ou numa mansão maravilhosa totalmente fotogênica, cinematográfica, e não sentir que é um lar. É o apego, o sentido, que traz o sentido da coisa. O afeto não tem preço.”
E, no fim, é isso que o mobiliário modernista brasileiro sempre quis ser: gesto, memória, continuidade.

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