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    Deus agora é o planeta (Por Miguel Esteves Cardoso)

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    É fácil explicar Copérnico às crianças, mas é difícil explicar o tempo em que ele vivia – sobretudo a crença generalizada em Deus.

    Percebem as coisas que continuam até hoje – as diferenças entre católicos e protestantes, as tensões entre religião e ciência – mas vêem-se aflitas para imaginar a extensão e a profundidade da crença em Deus, com todos os respectivos medos e preconceitos.

    De que adianta explicar o sol e os planetas se não conseguem perceber o choque que foi ouvir que a Terra (e o Deus da Terra, e os Adões e as Evas da Terra) não eram o centro do universo?

    Para explicar o que era Deus no princípio do século XVI é preciso identificar o Deus do século XXI: é o nosso planeta.

    A imagem de Deus é aquela fotografia tirada na missão Apollo, chamada “Earthrise” que mostra o nosso planeta azul a nascer, ou, para quem gosta mais do corpo completo, o “berlinde azul” fotografado quatro anos depois no Apollo 17.

    Não consigo olhar para estas fotografias sem me comover: penso logo nas guerras e nos poemas, nos amores e nas selvajarias, nos partos e nos assassinatos, nas ondas do mar e nas flores dos campos.

    Qualquer habitante da Terra se comove a olhar para a bola onde vivemos, pensando: “É aqui que tudo se passa, neste berlinde perdido no meio do espaço”.

    É o planeta que ocupa o lugar que dantes era ocupado por Deus: o lugar cerebral que depois sentimos como se fosse a nossa alma.

    As preocupações com o nosso planeta podem não ser sempre sinceras – mas as pessoas fingem que são, porque têm medo de parecer indiferentes.

    Conseguimos ser frios com a grande maioria dos habitantes do planeta, que passa mal e não recebe ajuda de quem passa bem, mas sobem-nos as lágrimas aos olhos quando pensamos no nosso maravilhoso planeta, tão cheio de encantos, mas tão maltratado.

    Havia essa mesma disparidade com a crença em Deus, quando era a explicação para todas as coisas, que toda a gente – ricos e pobres – aceitava.

    Deus agora é o planeta.

     

    (Transcrito do PÚBLICO)