A Escola Municipal de Educação Infantil (Emei) Antônio Bento, no bairro Caxingui, na zona oeste da capital paulista, foi alvo de uma ação policial após uma criança de quatro anos de idade desenhar a orixá Iansã em uma atividade. O caso foi revelado pelo Metrópoles no último domingo (12/11), e despertou o debate sobre educação antirracista e ensino religioso.
Nas redes sociais, alguns internautas questionaram por que a escola fez uma atividade sobre orixás. Afinal, uma criança de outra religião deveria ter contato com esse assunto na escola? E falar sobre orixás é ou não é ensino religioso?
Neste Dia da Consciência Negra (20/11), o Metrópoles conversou com dois especialistas em educação antirracista para responder essas e outras dúvidas sobre o tema.
Nesta reportagem, a pedagoga e escritora Kiusam de Oliveira e o consultor sobre protocolos de enfrentamento ao racismo Billy Malachias explicam a diferença entre educação antirracista e ensino religioso, e destacam a importância do estudo da ancestralidade e da história do Brasil para reconhecimento da própria identidade.
“Não se trata de ensino religioso, mas de educação para a diversidade cultural, para a equidade, para o reconhecimento da comunidade negra que, aliás, constituiu-se como maioria neste país”, adiantou Kiusam.
Educação antirracista X Ensino religioso
Os policiais militares que entraram na Emei Antônio Bento, na semana passada, disseram para a diretora que o desenho da orixá feito por uma aluna de quatro anos era prova de que a escola estava dando ensino religioso para as crianças.
Na ocasião, a funcionária respondeu que a atividade foi baseada na leitura do livro infantil Ciranda em Aruanda, que traz características de 10 orixás. A direção da escola e a Secretaria Municipal da Educação (SME) explicaram que a atividade estava ligada ao currículo antirracista da rede municipal de ensino.
Kiusam explica que o estudo dos orixás – divindades cultuadas em religiões de matrizes africanas como a umbanda e o candomblé – faz parte do campo da cultura, da história, da identidade e da espiritualidade de povos originários da África, uma das raízes do Brasil.
“Isso é distinto de ensino religioso, que por sua vez, tenta converter, doutrinar ou catequizar uma fé institucional específica”, explicou a especialista.
Billy afirma ainda que a umbanda e o candomblé não são religiões que buscam a conversão de novos adeptos, como um suposto ensino religioso faria e também como é comum em liturgias cristãs.
“As religiões de matrizes africanas não pretendem ser donas da verdade, elas não são religiões de conversão e elas não querem converter ninguém. Nunca se vê ninguém de candomblé batendo na porta de ninguém para convencer ninguém que Exú é a salvação”, afirmou.
Kiusam diz que a chamada educação antirracista, que tem como foco combater o racismo na sociedade, traz à tona, de forma didática, aspectos culturais dos povos africanos e de seus descendentes sobre os campos das artes, dos mitos e cosmologias – e não tem o objetivo de impor crenças, destacou.
“Ela promove o reconhecimento de referências ancestrais de crianças negras e não negras, fomentando o respeito e a diversidade, tendo como ponto de partida científico África como o berço da humanidade”, disse.
Mitologia africana em detrimento de outras mitologias
Você, provavelmente, deve se lembrar de ouvir na escola sobre como os gregos cultuavam deuses como Zeus e Poseidon – que se assemelham às orixás Iansã e Iemanjá pela associação com raios e com a água do mar, respectivamente. Ou então como os romanos adoravam Baco, deus do vinho, que tem o nome de Dionísio na mitologia grega.
Kiusam e Billy destacam que os mitos de deuses gregos e romanos são ensinados em sala de aula há bastante tempo, sem despertar as mesmas discussões que os de origem africana. Mas por que isso acontece?
A pedagoga diz que as mitologias ocidentais acabaram incorporadas ao sistema educativo como “cultura universal”. Por outro lado, quando narrativas africanas entram em cena, muitas vezes são vistas como “religiosidade”, “superstição” — ou mesmo como “inapropriadas” ao ambiente escolar.
“Isso revela outra face perversa do racismo: culturas de matriz africana continuam sendo marginalizadas, invisibilizadas ou tratadas com suspeitas”, diz ela. Billy reforça o argumento da colega.



Mitologia afro-brasileira faz parte do currículo antirracista
Otavio Augusto/Metrópoles
Desenhos que alunos do EMEI Antônio Bento, em São Paulo, fizeram em atividade sobre religiões de matriz africana
Material cedido ao Metrópoles
Desenho da orixá Iansã que motivou pai de aluna de escola infantil de São Paulo a chamar a polícia
Material cedido ao Metrópoles
Desenhos de alunos do EMEI Antônio Bento, em São Paulo, em atividade intitulada “Ciranda de Aruanda”
Material cedido ao Metrópoles
Capa do livro “Ciranda em Aruanda”, de Liu Olivina, publicado pela Editora Quatro Cantos
Reprodução/Liu Olivina/Editora Quatro Cantos
No livro, a autora traz desenhos e informações sobre 10 orixás
Reprodução/Liu Olivina/Editora Quatro Cantos
Liu Olivina, autora de livro que inspirou atividade denunciada à PM
Acervo Pessoal
“Aquilo que se entende por civilizado está distante da visão que a sociedade produziu e ainda reproduz sobre africanos e indígenas”, afirma o educador.
Billy, que atuou junto ao Ministério da Educação (MEC) na criação das diretrizes sobre o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas, explica que estudar as mitologias sobre diferentes povos ajuda a conhecer as histórias dessas populações.
O educador diz que já há, inclusive, outra mitologia africana há tempos inserida dentro das redes de ensino: aquelas relacionadas ao Egito.
“E contra essa cultura, contra essa mitologia, não há nenhuma oposição. Até porque a imagem que se tem do Egito é de uma civilização branca. E o Egito é negro”, conta ele.
Por que a educação antirracista é importante?
Para Billy, a melhor maneira de combater o racismo é conhecer a cultura do outro. Kiusam concorda, e afirma que, quanto mais cedo as crianças tiverem contato com “narrativas plurais”, menos espaço elas terão para que o preconceito se naturalize.
A pedagoga aponta diferentes benefícios de abordar o tema desde a infância, como reconhecimento de si e fortalecimento da autoestima, no caso de crianças negras, e ampliação da percepção de mundo e redução de estereótipos, no caso de crianças não negras.
“Educar antirracista é não apenas ensinar que o racismo existe, mas criar condições para que estudantes e professores/as atuem contra ele, construindo culturas de respeito, pertencimento e equidade, inclusive, junto a comunidade do entorno de cada escola”, destacou.
“Papel da lei é apresentar um Brasil que o Brasil desconhece”
Os educadores ressaltam que trazer temas como a mitologia e outros aspectos ligados à história da África são também uma forma de conhecer a própria história do Brasil, onde mais da metade da população é composta por pretos e pardos.
Mas esses assuntos só entraram no currículo de muitas escolas a partir de 2003, quando foi sancionada a lei 10.639, que tornou obrigatório, em todo o país, o ensino de História e Cultura Africanas e Afro-brasileiras tanto na rede pública quanto na privada.
Nos mais de 20 anos da lei, educadores relatam avanços no combate ao preconceito nas escolas e relacionam isso a uma maior presença de conteúdo sobre as populações negras.
Billy diz que a discussão também ajudou a ampliar a inclusão de crianças de religiões de matriz afro-brasileira, constantemente alvo de bullying dentro das escolas, ainda que o tema, como se percebeu nesta semana, seja alvo de polêmica em várias unidades.
“A Lei 10.639 oferece não só para os estudantes, mas também para as suas famílias a possibilidade de ter uma compreensão melhor sobre o país. […] O papel da lei é, entre outras coisas, apresentar um Brasil que o Brasil desconhece”.
A realização de uma sociedade pautada na educação antirracista, no entanto, ainda tem um longo caminho pela frente. Como mostrou o Metrópoles, em um levantamento exclusivo, as escolas estaduais de São Paulo registram, em média, oito casos de racismo por dia.
“Ser antirracista está para além das pessoas se identificarem como tal: é preciso lutar para destruir as bases que estruturam e eternizam o racismo em cada território, lutando, efetivamente, para aumentar os recursos simbólicos e concretos da população negra, possibilitando que alcance prosperidade e abundância”, afirmou Kiusam.
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Educação antirracista em SP
Tanto a gestão municipal quanto estadual de São Paulo mantém um acervo de livros didáticos e literários voltados à educação antirracista, em atendimento às Leis Federais nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008, como informaram à reportagem.
A SME informou que, somente em 2022, adquiriu mais de 700 mil livros com temática étnico-racial, destinados às bibliotecas escolares e ao programa Minha Biblioteca. A seleção contempla obras infantis, juvenis e adultas.
A rede municipal de ensino conta ainda com o documento “Orientações Pedagógicas: Povos Afro-brasileiros”, que orientam o trabalho cotidiano das escolas e subsidiam práticas de valorização das histórias e culturas afro-brasileiras, africanas, indígenas e migrantes.
As ações são acompanhadas pelo Núcleo de Educação para as Relações Étnico-Raciais (NEER), responsável por apoiar as unidades na implementação de práticas antirracistas e na integração desse acervo ao Currículo da Cidade, informou a Prefeitura de São Paulo.
Já no âmbito estadual, o acervo conta com 340 títulos que tratam de forma direta ou indireta da temática étnico-racial, além de obras adicionais na plataforma digital Leia SP. A Secretaria Estadual de Educação (Seduc) listou obras como:
- Na Minha Pele, de Lázaro Ramos
- Amoras, de Emicida
- Lugar de Fala e Pequeno Manual Antirracista, ambos de Djamila Ribeiro
- Mulheres, Raça e Classe, de Angela Davis
- Olhos D’Água, de Conceição Evaristo
- Memórias da Plantação, de Grada Kilomba
- A Queda do Céu, de Davi Kopenawa Yanomami
- Rastros de Resistência, de Ale Santos
A Seduc informou ainda que, desde o ano passado, integra a Política Nacional de Equidade, Educação para as Relações Étnico-Raciais e Educação Escolar Quilombola (PNEERQ), que orienta ações de formação, oferta de materiais e protocolos de enfrentamento ao racismo.
No âmbito dessa política, a pasta desenvolve iniciativas como o projeto “Conexão Brasil e África: caminhos pedagógicos”, com foco em literatura africana e afro-brasileira escrita por mulheres.





