A Sabesp anunciou no início de outubro que cogita fazer a recarga de mananciais que abastecem a Grande São Paulo com água proveniente de estações de tratamento de esgoto para reforçar a disponibilidade hídrica. A companhia, entretanto, não explicou ainda como isso será feito e diz que estuda a medida.
Até o momento, o que se sabe é que a Sabesp pretende contar com 2.000 litros por segundo no Alto Cotia, a partir da Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) de Barueri, além de 800 litros por segundo no reservatório de Taiaçupeba, vindos da ETE Suzano. Qual processo será adotado nesse intervalo entre as estações e os mananciais ainda não foi divulgado e, segundo a companhia, tudo segue em estudo.
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A legislação vigente e as resoluções ambientais impedem a utilização direta de água de reuso para consumo da população. Antes de chegar até as estações de tratamento de água (ETAs) e, depois, às torneiras das casas, devem ocorrer procedimentos intermediários.
É necessário, por exemplo, que o efluente tratado em uma ETE seja lançado em um curso d’água com vazão suficiente para a sua diluição antes da captação para abastecimento público.
Segundo o especialista em gestão de recursos hídricos Antônio Carlos Zuffo, que é professor da Unicamp, o que a legislação permite é um reuso indireto.
“Tudo que se usa e lança na rede de esgoto, tratado ou não, vai para um curso d’água [rios, córregos] e, em geral, é captado por outras indústrias, outras cidades que estão à jusante (abaixo). É o que acontece em Campinas, que utiliza água que já foi usada em Atibaia, Itatiba, Morungaba, Jarinu, Valinhos, Vinhedo, que jogam seus efluentes no rio. Nesse caso, está sendo considerada a diluição”, afirma.
Segundo Zuffo, esse método é mais seguro do que lançar o esgoto bruto e captar posteriormente, como ocorre em outras regiões do país onde não há tratamento de efluentes. “Mas o risco sempre existe, né? É bem menor, porque o efluente já foi tratado”, diz.
Coordenador do Observatório dos Direitos à Água e ao Saneamento (Ondas), Amauri Pollachi destaca que esse tipo de solução não é simples e, por isso, como cita abaixo, o mais correto seria ampliar a utilização de água de reuso para outros fins, não para recarga de mananciais, como forma de aumentar a disponibilidade de água potável para a população. “Para fazer uma obra como essa, não é tão fácil. As ETEs estão muito distantes de reservatórios de abastecimento público e estações de tratamento de água”, diz.
Plano antigo
Segundo especialistas ouvidos pela reportagem, a intenção de se usar água vinda da ETE Barueri no Alto Cotia não é uma novidade.
“Há cerca de 20 anos, a Sabesp até fez teste-piloto com efluentes da ETE Barueri, sendo lançados em uma wetland (várzea) construída, para depois serem captados numa estação de tratamento de água (ETA). Os testes foram feitos e, naquele momento, não foi uma solução possível de ser adotada”, afirma Pollachi. Até a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) participou do projeto.
O coordenador do Ondas afirma que é preciso considerar também a questão urbana ao se adotar essa medida. “Para colocar isso em um rio, você tem que ter um controle adequado do uso do solo na bacia desse rio, para impedir que haja outros tipos de contaminação que prejudiquem esse tipo de processo de tratamento”, afirma.
Zuffo, da Unicamp, diz que o lançamento de efluente tratado da ETE Barueri no Alto Cotia vem de um estudo de 1997. “Previa o aumento de produção de água da ETA do Alto Cotia, cessando o lançamento para o Baixo Cotia. A vazão natural seria substituída pelo efluente da ETE Barueri, que aí desceria o curso d’água, entrando nas áreas alagadiças (wetlands), já num processo de autodepuração, chegando no Baixo Cotia com uma qualidade melhor, não se caracterizaria como uso direto”, diz.
O professor da Unicamp afirma que o efluente da ETE Barueri, às margens do Tietê, teria que ser levado por tubulação, pressurizado, para substituir a vazão natural do rio até o Baixo Cotia. “Não na estação de tratamento de água do Alto Cotia, porque aí seria reuso direto”, diz.
Se mantida a proposta da virada do século, o lançamento dos efluentes da ETE Barueri deve acontecer depois da Rodovia Tavares, em áreas alagadiças. “A Sabesp deve estar contando com o tratamento terciário, natural, por brejos, que acabam recuperando a qualidade da água para abastecimento do Baixo Cotia”, diz.
Alternativas
Busca de mananciais ainda mais distantes do que aqueles onde já se coleta atualmente é algo bastante caro e não deveria ser visto como alternativa, segundo Pollachi.
“Há dez anos, havia estudos que indicavam que você trazer água de reservatórios como Jurumirim, na bacia do Rio Paranapanema, a 250 km de São Paulo, na cidade de Avaré, isso teria um custo de R$ 5 bilhões a R$ 6 bilhões. Hoje, acredito que esse custo seja o dobro”, diz Pollachi.
Segundo o especialista, uma boa solução é reduzir as perdas por vazamentos na rede. “Fazer com que esse processo de redução de perdas seja eficaz, não se fique enxugando gelo, como tem sido feito”, afirma.
Pollachi também diz que a perfuração de poços artesianos deve ser tomada somente como solução local, para um condomínio de grande porte ou uma indústria, por exemplo. “Na região metropolitana de São Paulo, a disponibilidade de água subterrânea é pequena para atender toda a demanda”, afirma.
O especialista aponta também outra possibilidade. “Pode-se perfurar poços nas regiões mais distantes, extremas da região metropolitana, justamente aquelas que estão sendo severamente afetadas pelo esquema de redução de pressão ou fechamento da distribuição de água pela Sabesp”, diz.
Zuffo, da Unicamp, afirma que a Grande São Paulo está sobre um cristalino, rocha, então fura-se o poço, mas se tem pouca água. “Pode encontrar água subterrânea, mas a vazão é muito pequena, abaixo de 50 metros cúbicos por hora. No Alto Tietê, deve ter de 2 a 20 metros cúbicos por hora, o que para abastecimento público é algo muito baixo”, diz.
“Existe uma região ao longo do Tietê que é mais permeável, em que se consegue obter água, mas tem posto de gasolina, fossa, essa contaminação do aquífero superficial. A maioria dessa água vem de vazamento da rede da Sabesp”
De forma geral, Zuffo também diz que é inviável a busca de recursos hídricos cada vez mais distantes da Grande SP, daí a necessidade de desenvolvimento de novas tecnologias para o tratamento de água, para ampliar o reuso.
Dessalinização e tratamento da água do mar para aumentar a capacidade do Alto Tietê, por exemplo, é visto como algo inviável economicamente.
Reuso
Pollachi defende o emprego de água de reuso para outros fins, não como como recarga de sistemas fornecedores de água potável para a população.
A água de reuso já é utilizada atualmente, por exemplo, no Polo Petroquímico de Capuava, no ABC, vinda por meio de uma adutora independente do restante da rede desde a estação de tratamento de esgoto na divisa de São Caetano com São Paulo. “É uma solução muito boa, porque o polo deixou de usar água potável para sistemas de resfriamento, industriais”, diz Pollachi.
O especialista diz que há aplicações muito nobres para a água de reuso, como em paisagismo, lavagens de ruas, entre outras. “Isso tem que ser incentivado e não está sendo explorado de uma forma abrangente na região metropolitana”, afirma.
Pollachi diz que se metade do que é tratado nas ETEs da Grande São Paulo for direcionado para atividades como lavagens de veículos e pátios de manobras, por exemplo, daria algo em torno de 15 metros cúbicos por segundo. O equivalente em a água potável seria poupado para o uso da população. “Isso teria que ser incentivado, trabalhado de forma racional, ao invés de ser tratado de uma forma simplista de jogar em um reservatório qualquer”, afirma.
Métodos em outros países
Pollachi afirma que outros lugares do mundo, como na Europa e na Califórnia, fazem recarga com efluente vindo de estações de tratamento de esgoto. Entretanto, ao invés de se lançar em mananciais, essa água é enviada para aquíferos subterrâneos.
O especialista cita como exemplo o método usado na China, onde esteve em 2013, com efluente de todas as estações de tratamento de esgoto de Pequim, com mais de 20 milhões de habitantes em sua região metropolitana, sendo lançado em um aquífero que sofreu uma redução muito grande, por servir tanto para o abastecimento público quanto para a irrigação.
“Quando se está colocando esse efluente no aquífero, ele ganha um tempo de resiliência, de permanência, bastante longo. Acaba se diluindo com a água naturalmente armazenada nessa cavidade subterrânea. A chance de haver alguma contaminação no uso posterior é extremamente reduzida”, diz Pollachi.
Segundo o especialista, essa técnica é usada também na Califórnia e em alguns países da Europa há algum tempo, pelo menos 40, 50 anos.
Zuffo cita Israel, um país semiárido e com alta tecnologia, que trata efluente, mas não é usado para abastecimento. “É lançado nos cursos d’água para ser, depois, captado para irrigação.”
O professor da Unicamp também afirma que, na Inglaterra, a água do Tâmisa já foi reusada várias vezes.
Zuffo diz que uma das grandes questões é que fármacos, substâncias ilícitas e hormônios tomados pela população não sejam removidos pelas estações de tratamento. “Esse é um grande problema no abastecimento, mas que não é falado para não gerar estresse na população”, diz.
O professor da Unicamp afirma que, em muitos lugares, cidades e empresas são obrigadas a lançar os efluentes tratados acima do ponto de captação (à montante). “Assim, têm que ser rigorosos com o tratamento de efluente para que não contamine a água que vai captar logo depois”, diz. “A qualidade da água consumida vai depender do tratamento que vai dar”, afirma.
O que diz a Sabesp
A Sabesp foi questionada ao longo da semana sobre qual método será utilizado para garantir a qualidade da água que será oferecida à população, bem como se pretende propor mudança na legislação vigente, entre outras questões.
A empresa respondeu que “está estudando a recarga de mananciais como uma solução sustentável de médio a longo prazos para ampliar a oferta de água na região metropolitana de São Paulo”. “A iniciativa integra a estratégia da companhia para promover o uso consciente da água em um contexto de mudanças climáticas e crescentes desafios de escassez hídrica”, disse.
Segundo a Sabesp, técnicos têm realizado visitas técnicas e estudos comparativos com experiências internacionais de referência, analisando as tecnologias mais avançadas aplicadas em locais como Califórnia (EUA), Barcelona (Espanha) e Cingapura, além de projetos em desenvolvimento no Distrito Federal (Brasília).
“Vale ressaltar que a partir da concepção final dos projetos, os mesmos passarão por todas as etapas de análise, licenciamento e aprovação dos órgãos competentes, garantindo plena conformidade com as legislações vigentes”, disse, em nota.
