Por anos, milhões de pessoas conviveram com um incômodo difícil de explicar: uma espécie de ruído mental constante, uma “voz” interna que insiste em falar sobre comida, mesmo quando não há fome. Hoje, esse fenômeno tem nome: food noise (ruído alimentar), e está no centro de uma mudança profunda na forma como se compreende a obesidade.
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A endocrinologista Marina Karam, que acompanha pacientes com obesidade e comportamentos alimentares desregulados, explica que o termo descreve o pensamento intrusivo persistente em comida, um fluxo contínuo que acontece fora da vontade consciente.
“É como se o cérebro estivesse sempre sintonizado em comida”, resume. “Mesmo sem fome, a pessoa pensa na próxima refeição, imagina o que pode beliscar, cria cenários sobre o que comer mais tarde. Esse pensamento ocupa um espaço mental enorme e atrapalha muito a vida.”

Um sintoma — não uma falha de disciplina
Segundo Marina Karam, o ponto-chave é entender que obesidade é uma doença, e o food noise é um de seus sintomas. Assim como dor é sintoma de inflamação, o pensamento intrusivo em comida é sintoma de uma desregulação metabólica e neuro-hormonal.
“O problema não é querer comer”, explica, “é que o pensamento vem independente da fome. A pessoa pode ter acabado de se alimentar e, ainda assim, sente a mente voltando sempre para comida. É cansativo, desgastante e interfere no trabalho, no lazer, na atenção.”
A especialista afirma que esse tipo de pensamento compulsivo leva ao ganho de peso, mas também algo menos visível: uma perda significativa de qualidade de vida.
“A pessoa não tem sossego mental”, diz.
Como o food noise aparece no dia a dia
A endocrinologista descreve situações comuns que se repetem entre os pacientes:
- Pensar no almoço enquanto ainda toma o café da manhã
- Ir trabalhar e, no meio de uma tarefa, imaginar passar na padaria a caminho de casa;
- Lembrar que tem leite condensado e cogitar fazer um brigadeiro;
- Fantasiar sabores sem motivo;
- Sentir urgência em comer, mesmo sem fome fisiológica.
Esses pensamentos, diz Marina, não são uma escolha: eles simplesmente invadem.
A influência das canetas de GLP-1
Você deve estar se perguntando: Por que só agora falamos sobre isso?
O termo food noise só ganhou força após a popularização dos agonistas de GLP-1, como Ozempic, Wegovy e Mounjaro.
Esses medicamentos, inicialmente desenvolvidos para diabetes, passaram a ser amplamente usados para controle de peso. E foi aí que algo inesperado aconteceu.
“Os pacientes começaram a dizer: ‘Eu tinha um pensamento contínuo em comida — e agora não tenho mais’”, relata Marina Karam.
Esse relato repetido em consultório acendeu um alerta: aquilo que parecia apenas “falta de foco” ou “compulsão” talvez fosse um fenômeno neurológico real, e, possivelmente, tratável.
A partir dessas observações, pesquisadores passaram a estudar o tema com mais profundidade. Hoje, já existem scores clínicos usados para diagnosticar a intensidade do food noise.
Quando o cérebro não dá pausa
Para explicar o fenômeno aos pacientes, Marina Karam usa uma imagem simples e muito precisa:
“O food noise é como uma rádio do cérebro sempre ligada em comida. Pedindo, chamando, ocupando espaço. E esse espaço deveria estar disponível para outras coisas.”
É justamente esse roubo de espaço mental que faz o fenômeno ser tão prejudicial. Ele interfere na concentração, na saúde emocional, na produtividade e até na vida social.
O que a ciência internacional acrescenta ao debate
Especialistas de outros países também passaram a estudar o fenômeno. Pesquisas apontam que o food noise pode estar ligado a:
- Exposição prolongada à cultura dietante;
- Restrições alimentares rígidas;
- Culpa e moralização da comida;
- Respostas do cérebro ao estresse e à privação.
E destacam que os agonistas de GLP-1 agem de duas maneiras: reduzem o apetite fisiológico e diminuem o comer por recompensa, reduzindo a anticipação prazerosa ligada à comida.
É por isso que, ao usar o medicamento, muitas pessoas relatam que o cheiro de fast-food, a visão de doces ou a ideia de comer algo indulgente deixam de provocar aquele desejo mental irresistível.
E quando o tratamento é interrompido?
Esse é um ponto importante: o medicamento silencia o food noise — mas não o elimina definitivamente.
Quando o uso é interrompido, o ruído volta. E, junto com ele, muitas vezes retorna o peso.
Por isso, especialistas defendem que o período de silêncio mental proporcionado pelas “canetas” seja usado para construir novos hábitos, padrões alimentares e autonomia emocional.
Como reduzir o food noise sem medicamentos
Estratégias comprovadas incluem:
- Refeições regulares e completas (carboidrato + proteína + gordura);
- Planejamento semanal de comidas;
- Evitar extremos de restrição;
- Não rotular alimentos como “bons” ou “ruins”;
- Trabalhar a relação emocional com comida;
- Reduzir estresse;
- Praticar pausas conscientes para entender o que o corpo está pedindo.
Food noise não é culpa — é um sinal do corpo
A endocrinologista Marina Karam reforça que reconhecer o food noise como um sintoma, e não como falha pessoal, traz alívio e abre espaço para tratamento.
“A pessoa não está pensando em comida porque quer. É o cérebro fazendo barulho. Quando entendemos isso, conseguimos ajudar com ciência, cuidado e estratégia.”
O objetivo não é silenciar a mente por completo, mas permitir que ela volte a ter espaço para o que realmente importa, e que a comida retome seu lugar natural na vida: nutrição, prazer, convivência — não obsessão.
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