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    Fronteira Cerrado: ativistas pedem mesma prioridade dada à Amazônia

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    Enquanto o mundo se prepara para a 30ª Conferência da ONU para Mudanças Climáticas (COP30) em Belém (PA), ativistas, cientistas e ambientalistas clamam para que o Cerrado seja igualado em importância política à Floresta Amazônica, devido ao serviço que o bioma presta à sociedade. Chamado de “berços das águas”, ele abriga as nascentes de oito das 12 bacias hidrográficas do Brasil. 

    Uma série de pesquisas têm sustentado que o bioma é central para enfrentar as mudanças do clima pelo seu potencial de armazenar água, insumo cada vez mais ameaçado frente às secas prolongadas provocadas pelo aquecimento da Terra. Estima-se que 40% da água potável do país venha do Cerrado. 

    Ao derrubar as árvores nativas do bioma, o desmatamento – impulsionado pelo agronegócio – estaria contribuindo para aprofundar a redução das vazões no Cerrado, bioma que ocupa 23,3% do território nacional.

    Esse efeito é causado especialmente porque essa vegetação ajuda a abastecer os lençóis freáticos. Também conhecido como “floresta invertida”, o Cerrado possui espécies com raízes de até 15 metros de profundidade, que levam a água da chuva para os gigantescos aquíferos subterrâneos.

    Para investigar o tema, a Agência Brasil conheceu um dos epicentros da fronteira agrícola brasileira, o município de Balsas, no extremo sul do Maranhão (MA), onde o crescimento econômico movido pelo agronegócio convive com altas taxas de desmatamento. A reportagem abriu a série especial Fronteira Cerrado.

    A Agência Nacional de Águas (ANA) já reconhece que, até 2040, o Brasil pode perder até 40% da água em regiões do Norte, Nordeste, Centro-Oeste e parte do Sudeste. Uma redução substancial da vazão das águas dos rios e nascentes pode trazer graves consequências, como inflação de alimentos e da energia elétrica, além de racionamentos de água e queda da produtividade agrícola.

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    Mais desmatamento, menos vazão nos rios

    Uma das principais pesquisas sobre as águas do Cerrado, publicada neste ano, analisou as seis principais bacias hidrográficas do bioma a partir de dados da vazão de diversos rios, entre 1970 e 2021, fornecidos pela Agência Nacional de Águas (ANA), além de analisar dados do MapBiomas de áreas desmatadas entre 1985 e 2022. 

    Por meio dessa análise, a Ambiental Media calculou que o Cerrado perdeu 27% da vazão mínima na média das seis principais bacias em comparação à década de 1970 – o equivalente a 30 piscinas olímpicas de água a cada minuto. 


    Brasília (DF), 01/11/2025 - Infográficos - especial Fronteira Cerrado. Arte Agência Brasil

     

    A vazão do Rio São Francisco caiu pela metade desde a década de 1970. O mais importante rio do Nordeste, que abastece milhões de brasileiros, tem 90% das suas nascentes vindas do Cerrado. 

    O estudo “Cerrado: o Elo Sagrado das Águas do Brasil” atribui a queda da vazão a dois fatores principais: mudança no uso do solo via desmatamento, urbanização ou infraestruturas; e mudanças climáticas. Enquanto o primeiro fator seria responsável por 56% da retração do nível de água, a mudança do clima seria responsável por 44% da vazão menor.

    As mudanças climáticas afetam o nível das águas devido à redução do período da chuva e ao aumento da evapotranspiração dos rios, causado pelas temperaturas mais elevadas. Já o desmatamento é o principal fator para a mudança do uso do solo, retirando a capacidade do Cerrado reter água e proteger nascentes. 

    “A expansão da soja na bacia do São Francisco é alarmante: em 37 anos, a área plantada cresceu 71 vezes. No oeste da Bahia, 2,6 milhões de hectares foram convertidos em monoculturas [área do tamanho de Alagoas]”, diz o estudo. 


    Brasília (DF), 03/11/2025 - Presidente do instituto cerrado, Yuri Salmona durante entrevista para projeto cerrado. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

    Brasília (DF), 03/11/2025 – Um dos autores do estudo do Ambiental Media, Yuri Salmona projeta cenário ainda pior até 2050. – Valter Campanato/Agência Brasil

    O geólogo Yuri Salmona, um dos autores da análise e doutor em ciências florestais pela Universidade de Brasília (UnB), destacou a gravidade da situação: “o desmatamento no Cerrado é um problema nacional por muitos motivos, mas especialmente porque ele impacta o maior insumo do país: a água”, destacou.

    Estudos conduzidos pelo geólogo projetam que o Cerrado deve perder, até 2050, mais um terço de suas águas, o que terá impactos sobre todos os demais biomas que recebem águas do Cerrado, incluindo Caatinga, Pantanal, Amazônia e a bacia do Paraná, fundamental para produção de energia. 

    “Podemos esperar um ambiente mais seco, com mais escassez e mais conflitos por água. Nossa matriz energética é baseada em hidrelétricas e a falta de água leva a falta de energia. Além disso, 80% da área irrigada do Brasil está dentro do Cerrado, sendo que 50% da água captada do Brasil é para agricultura e cerca de 11% para a pecuária”.

    Consultada pela Agência Brasil, a ANA, entidade responsável por monitorar os recursos hídricos do Brasil, citou o estudo produzido pelo seu corpo técnico em 2024 que aponta para possível significativa redução da vazão dos rios, não apenas no Cerrado, em até 40% nos próximos 15 anos.  

    “Essa tendência pode levar ao aumento de trechos de rios intermitentes, que secam temporariamente, afetando setores como geração hidrelétrica, agricultura e abastecimento humano”, disse, em nota.  

    Abertura de novas áreas

    De acordo com o Relatório Anual do Desmatamento no Brasil (RAD 2024), do MapBiomas, 2024 foi o segundo ano consecutivo em que o Cerrado teve uma área desmatada maior que a da Amazônia – enquanto ela ocupa o dobro do território no país. 

    O primeiro lugar no ranking dos biomas permanece mesmo com uma redução de 11,49% de agosto de 2024 a junho de 2025 no desmatamento monitorado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) – segundo ano consecutivo de queda após cinco de alta.

    A situação preocupa os especialistas, porque a tendência é de que mais áreas sejam abertas para o agronegócio nos próximos anos. Ao mesmo tempo, enquanto o Código Florestal limita o desmatamento nas propriedades da Amazônia a 20%, no Cerrado, pode-se desmatar até 80% das áreas privadas.  

    Projeções do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) estimam o aumento de 15% da área plantada para grãos em uma década – desde a safra de 2023/24 até a de 2033/34 –, com destaque para a soja, que deve aumentar a área plantada em 25% nesses 10 anos. 

    Ainda segundo o Mapa, essa expansão deve se concentrar, principalmente, na região do Matopiba, nome dado pelas iniciais do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, e que é a área prioritária para expansão do agronegócio no Brasil, formada pelo Cerrado.

     


    Brasília (DF), 01/11/2025 - Infográficos - especial Fronteira Cerrado. Arte Agência Brasil

     

    Desmatamento legal também é um risco 

    O governo federal reconhece que o desmatamento do Cerrado pode colocar em risco a segurança hídrica do Brasil, conforme consta na 4ª fase do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Bioma Cerrado, lançado ainda em 2023. 

    “Mesmo com o controle total do desmatamento ilegal no bioma, a possibilidade de obter a autorização de supressão para 34,7 milhões de hectares implica na manutenção de taxas de desmatamento superiores a 10 mil km2 para além de 2050”, diz o plano.

    O documento do Ministério do Meio Ambiente (MMA) afirma que a forma como o Código Florestal é aplicado é insuficiente para a manutenção do regime hídrico da região. “Sendo assim, torna-se urgente a revisão do planejamento territorial do bioma, e principalmente do Matopiba”, diz o PPCerrado. 

    O secretário extraordinário de Controle do Desmatamento e Ordenamento Territorial do Ministério do Meio Ambiente (MMA), André Lima, explicou à Agência Brasil que o Cerrado é fundamental para o equilíbrio ecológico do país, ao estabelecer uma relação com a Amazônia que forma os chamados “rios voadores”, que produzem boa parte das chuvas no Brasil. 

     


    Brasília (DF), 04/09/2025 - André Lima, secretário extraordinário de Controle do Desmatamento e Ordenamento Ambiental Territorial, participa do programa A Voz do Brasil. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

    Brasília (DF), 04/09/2025 – O secretário André Lima, quando participou do programa A Voz do Brasil. – Valter Campanato/Agência Brasil

    “O avanço do desmatamento no bioma vem provocando atrasos no início das chuvas e impactando diretamente a produção agrícola, a geração de energia e o equilíbrio hídrico”, informou o secretário do MMA. 

    Segundo o ministério, a estação chuvosa no Cerrado acumula um atraso de 1 mês e 26 dias se comparado com a década de 1980. Ou seja, as chuvas vêm atrasando, em média, 1,4 dia por ano. 

    Em meio a esse cenário preocupante, o secretário André Lima lembrou que o desmatamento no bioma vem caindo. Ao mesmo tempo, informou que o Executivo não trabalha, por enquanto, com uma possível revisão do Código Florestal para aumentar o nível de proteção do bioma. 

    Lima destacou que o governo aposta em políticas para ampliar a conservação e o controle do desmatamento, a exemplo do projeto Ecoinvest, que captou R$ 30 bilhões para recuperação de pastagens degradadas e aumento da produtividade agrícola, o que evitaria abertura de novas áreas. 

    “O MMA atua, ainda, na estruturação de projetos de carbono, na ampliação do pagamento por serviços ambientais e na criação de incentivos tributários e linhas de crédito mais atrativas para produtores que conservem áreas de Cerrado além do exigido pela legislação”.

    Problema “invisível”

    A diretora responsável pelo Departamento de Recursos Hídricos do MMA, Iara Bueno Giacomini, concorda que o problema é mais grave do que a população consegue perceber no cotidiano. 

    “É difícil a gente falar a dimensão de uma coisa que a gente não vê. A maior parte da água do Cerrado está debaixo da terra. No reservatório da Cantareira, em São Paulo, todos sabemos o nível da água a cada dia. A gente não tem isso dos rios e aquíferos do Cerrado”, pontuou.

    Iara destacou que o governo tem adotado políticas para beneficiar e criar incentivos para a preservação voluntária da vegetação nativa. “Porque a lei está criada de uma maneira que, de certa forma, permite que a gente continue desmatando o Cerrado”, explicou. 

    A diretora antecipou que o governo trabalha para publicar decreto para regulamentar Áreas Prioritárias para Conservação de Águas do Cerrado (APCACs). Essas áreas devem inaugurar nova categoria de área de preservação para proteger as águas do bioma. 

    O Departamento de Recursos Hídricos do ministério ainda calcula que exista hoje no Brasil um déficit de 9 milhões de hectares de áreas de preservação para proteção de cursos d’água, desde rios a nascentes. 


    Balsas (MA), 10/10/2025 – Riacho na comunidade do Brejão, nos Gerais de Balsas. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

    Balsas (MA), 10/10/2025 – Riacho na comunidade do Brejão, nos Gerais de Balsas.  – Fernando Frazão/Agência Brasil

     

    “Uma das metas do Plano de Adaptação Climática é promover a recuperação, até 2031, de um milhão desses hectares já mapeados que precisam de vegetação para proteção dos recursos hídricos. Nosso plano é, para isso, mobilizar os Comitês de Bacia, municípios e outros atores para atingir essa meta”, acrescentou a diretora do departamento Iara Bueno Giacomini. 

    O departamento de recursos hídricos explicou que, no Brasil, ainda não há uma indústria da recuperação de vegetação nativa estruturada, o que torna esse processo difícil e mais caro. 

    Entre os projetos em andamento, está o acordo firmado com a Eletrobrás para investimentos de R$ 700 milhões para recuperar 13 mil hectares de bacias hidrográficas de todo o país. 

    “Se você olhar a longa história da agenda de revitalização do governo federal, não teve nenhum recurso dessa escala, nem de tamanho de área que o projeto envolve. A partir dessas experiências, pretendemos baratear a recuperação ambiental e transformar isso em uma política pública estável e contínua no tempo, dada a pressão sobre o Cerrado”, informou o coordenador-geral de Revitalização de Bacias Hidrográficas do MMA, Alexandre Tofeti. 

    A diretora Iara Bueno considera ainda fundamental envolver o agronegócio no projeto para proteção das águas do Cerrado. Para ela, ainda é possível alcançar o desmatamento zero, como projeta o governo, com o atual modelo da atividade agropecuária no Brasil. 

    “A gente não atingiu ainda um ponto de não retorno no Cerrado, ainda bem. Agora, não tem solução simples para problema complexo. Diante das incertezas das mudanças climáticas, ninguém pode assegurar que vai ter água em determinado lugar pelo período que se precisa. É preciso trabalhar a conscientização do agronegócio, já que ele vai ser também afetado. Alguns atores do agronegócio já perceberam”, completou.

    Pesquisador minimiza efeitos do desmatamento

    Contratado para analisar a situação hídrica por associações de produtores rurais que usam irrigação, o engenheiro agrícola Marcos Heil Costa, professor da Universidade Federal de Viçosa (UFV), minimizou os efeitos do desmatamento para infiltração da água nos solos do Cerrado. 

    Ele calculou que apenas em 10% das áreas analisadas por sua equipe foram identificados problemas para infiltração da água em áreas sem Cerrado. 

    “Só faz diferença quando o tráfego de máquinas ou o processo de desmatamento e preparo do solo reduz, por algum motivo, essa infiltração. Medimos 120 pontos lá na Bahia. Esse tipo de problema deu em 10% dos casos. E a literatura, e outros colégios que estudaram isso em outros segmentos também, notaram números semelhantes. Diminui [a infiltração], mas não diminui a ponto de ser crítico”. 

    O professor produz, há oito anos, análises hidrológicas para as Associação de Irrigantes da Bahia (BA) e a Associação de Produtores de Feijão e Irrigantes de Mato Grosso (MT). Os empresários procuraram Heil preocupados com a situação hídrica para a lavoura após as secas de 2015 e 2016. 

    “Isso assustou eles, e vieram atrás da gente procurar respostas. Eles tinham muitas perguntas e ninguém tinha dado. Era um ambiente de total desinformação”, disse o especialista, para quem a seca anos ajudou os empresários a entender a lógica hídrica que abastece o negócio. 

     


    Balsas (MA), 09/10/2025 – Produção de algodão em fazenda na região da Batavo. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

    Balsas (MA), 09/10/2025 – Produção de algodão em fazenda na região da Batavo.  – Fernando Frazão/Agência Brasil

    Ainda segundo o pesquisador, apenas estão preocupados com o tema aqueles agricultores que investem em irrigação. Técnica que, segundo ele, vem crescendo no Brasil e que, se mal planejada, pode prejudicar a segurança hídrica das regiões que fazem uso intensivo dela. 

    “Regiões onde os agricultores dependem principalmente da chuva, e isso é 90% da agricultura brasileira e 100% da pastagem brasileira, eles não estão preocupados. Realmente não estão preocupados porque as chuvas normalmente são suficientes”, avaliou. 

    O professor de agronomia da UFV disse que empresários que investem em irrigação já começaram a investir também em preservação de nascentes, em controle de erosão, em aumentar a infiltração de água no solo, em plantar árvores e em monitorar recursos hídricos.

    Para Costa, ninguém sabe exatamente o tamanho do problema hídrico do Brasil, porque o monitoramento que o Brasil faz dos rios e aquíferos é muito pouco desenvolvido. “Nosso monitoramento é meio simbólico. Você pega os Estados Unidos, eles têm 100 mil poços de monitoramento instalados. No Brasil a gente não nem mil. Por isso, digo que ninguém tem a noção exata da dimensão desse problema no país”, finalizou. 

    Posição do agronegócio 

    A Agência Brasil procurou as principais organizações do agronegócio do país para comentar os estudos que apontam que as atividades do setor contribuem para redução das vazões dos rios do Cerrado. 

    Procurada com semanas de antecedência, a Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA), principal entidade que representa o setor nacionalmente, não se manifestou sobre o tema – assim como a Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) e a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec).  

    Por outro lado, a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), que representa o agronegócio no Congresso Nacional com mais de 300 parlamentares, se manifestou por meio de nota.

    A FPA informou não reconhecer o estudo da Ambiental Media citado nesta reportagem sobre os riscos do desmatamento para segurança hídrica do Brasil. “Não reconhecemos estudos sem metodologia científica comprovada”, afirmou, acrescentando que é o Poder Executivo o responsável por políticas que protejam o Cerrado e garantam o desenvolvimento sustentável. 

    A metodologia está descrita na página do estudo e pode ser acessada aqui.

    “O combate a invasões de terras e a regularização fundiária são projetos que atuam em conformidade com o restabelecimento da segurança jurídica, com a responsabilização de crimes ambientais e o devido combate a qualquer irregularidade. Estas pautas são prioritárias para a FPA e podem resolver os problemas ambientais no Brasil”, disse a Frente Parlamentar. 

    Também se manifestou, por meio de nota, a principal entidade de produtores de soja do Brasil: a Aprosoja. Disse que o Brasil é conhecido pelas Nações Unidas (ONU) pelas boas práticas agrícolas e que é “frontalmente contra o desmatamento que não esteja em concordância com as leis ambientais”.

     


    Balsas (MA), 09/10/2025 – Vista de fazendas de cultivo de soja ao longo da rodovia MA-007. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

    Balsas (MA), 09/10/2025 – Vista de fazendas de cultivo de soja ao longo da rodovia MA-007. – Fernando Frazão/Agência Brasil

    O reino da soja

    A soja é a principal lavoura do Cerrado. Atualmente, 50% desse grão cresce na savana brasileira, ocupando 23 milhões de hectares na safra 2022/2023. 

    A organização ponderou que o estudo “Cerrado – O Elo Sagrado das Águas do Brasil” não apresenta dados do aumento da produção de grãos e oferta de alimentos, “o que ajudaria a contextualizar os benefícios econômicos e sociais que a soja proporciona com a geração de empregos diretos e indiretos na produção agrícola, no comércio e nos serviços”. 

    A Aprosoja pondera que o regime de chuvas do bioma favorece o cultivo do grão sem irrigação, o que preserva o volume de água dos rios. “[A soja sem irrigação] representa aproximadamente 95% da área cultivada com soja no Cerrado”.

    A associação sustenta ainda que a planta ajuda a infiltrar a água no solo. “Solos com boa estrutura e porosidade permitem maior retenção e movimentação da água, que retorna para os cursos de água. Por isso, boas práticas são fundamentais”, disse. 

    Os ambientalistas ponderam, por outro lado, que a soja não tem a mesma capacidade de infiltração das árvores nativas do Cerrado, que fazem o bioma ser conhecido como a caixa d’água do Brasil. 

    Supressão e rastreabilidade

    Atuando na preservação do Cerrado há 22 anos, a ecóloga Isabel Figueiredo, que coordena o Programa Cerrado do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), avalia que o país já vive um “pequeno colapso climático” que vem aumentando o uso da irrigação das plantações de soja. 


    Brasília (DF), 03/11/2025 - Isabel Figueiredo (ISPN) durante entrevista para projeto cerrado. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

    Brasília (DF), 03/11/2025 – Isabel Figueiredo (ISPN) alerta: governos estaduais têm poder de mudar o cenário. – Valter Campanato/Agência Brasil

     

    Para ela, o PPCerrado do governo federal é “um documento muito bom”, mas destaca que faltam recursos orçamentários para implementá-lo em sua integridade. Além disso, avalia que o MMA tem pouco espaço para reduzir o desmatamento, uma vez que as autorizações para supressão de vegetação nativa é uma atribuição dos estados. 

    “Quem vai mudar o cenário são os governos estaduais. Mas as secretarias de meio ambiente, em geral, ao invés de cumprirem com a sua tarefa, estão como despachantes do agronegócio. Tá rolando muita concessão de autorizações de qualquer jeito”, afirmou. 

    Na primeira reportagem da série especial Fronteira Cerrado, um dos assuntos são as autorizações para suprimir vegetação do Cerrado no Maranhão

    Ainda segundo a especialista, a cadeia produtiva da soja não parece interessada em estabelecer processos para rastrear a origem dos grãos, identificando a área onde foram plantados. Segundo Isabel, a soja teria que seguir o exemplo da cadeia da carne, que tem um processo de rastreamento consolidado.  

    “Hoje em dia, as cadeias produtivas todas querem se modernizar e a rastreabilidade dos produtos é um diferencial. São qualidades que algumas indústrias querem ostentar. Já o setor da soja não, ele é mais retrógrado. Ele não quer se modernizar nesse aspecto porque vai evidenciar que não tem como eles estarem limpos ambientalmente falando”, completou.

    A Agência Brasil questionou a Aprosoja se o setor tem interesse ou trabalha para implementar uma rastreabilidade do produto para saber exatamente onde aquele grão foi plantado e se respeitou a legislação ambiental e os direitos humanos de comunidades tradicionais do Cerrado. 

    A assessoria da Associação dos Produtores de Soja explicou que a rastreabilidade do produto é uma questão dos compradores da soja, e sugeriu consultar a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), que processa os grãos em farelo ou óleo. 

    A Abiove afirmou à reportagem que o setor segue critérios socioambientais rigorosos para compra e financiamento de produção agrícola. Em nota, diz que as empresas que formam a associação têm sistemas próprios de rastreabilidade e que lideraram as discussões sobre o tema na Coalizão Brasil clima, Floresta e Agricultura, que reuniu representantes do setor privado, financeiro e da sociedade civil e emitiu recomendações para dar transparência ao setor. 

    “A Abiove apoia e participa de iniciativas que ampliam a transparência do campo à indústria, como a plataforma AfroBrasil+Sustentável, desenvolvida pelo governo federal, que cruza dados fundiários e ambientais e fortalece a rastreabilidade das cadeias agrícolas. O Brasil tem condições únicas de produzir e conservar e o setor da soja é um exemplo dessa conciliação”, destacou a associação.

     

    Série especial

    Esta reportagem é a primeira da série especial Fronteira Cerrado, que investiga como o avanço do agro no bioma está afetando os recursos hídricos do país. Até quarta-feira serão publicados novos conteúdos – acompanhe! 

    A produção dessa série foi viabilizada a partir da Seleção de Reportagens Nádia Franco, iniciativa da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) que destinou R$ 200 mil para o custeio de conteúdos especiais produzidos por jornalistas da empresa. De 54 projetos inscritos, oito foram selecionados por um conselho editorial. 

    A jornalista Nádia Franco era editora da Agência Brasil e dedicou 49 anos à comunicação pública. Ela faleceu em agosto de 2025.

    O Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) custeou as passagens áreas da equipe até Imperatriz (MA).

     

    *Produção de Beatriz Evaristo