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    Marcha das Mulheres Negras: o dia em que a maioria cobra justiça

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    Hoje, 25 de novembro, Brasília amanheceu ocupada por uma força que não cabe nos números. A Marcha das Mulheres Negras acontece mais uma vez na capital. Não é desfile, não é ato eventual, não é cerimônia para foto. É começo, meio e fim de uma história que o Brasil teima em não narrar com honestidade. Há marchas que surgem de protesto imediato. Esta nasce de quatro séculos de sobrevivência e de uma teimosia ancestral que se recusa a entregar o futuro. Há algo de inaugural toda vez que elas ocupam o espaço público, como se dissesse ao país que o tempo da omissão acabou.

    Por trás da marcha está a força organizada das mulheres negras brasileiras. São coletivos que se articulam há décadas como a Articulação Nacional de Mulheres Negras, a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas, movimentos de base, associações comunitárias e lideranças espalhadas pelos territórios que sustentam a vida onde o Estado recua. Nada disso começou hoje. A mobilização que vemos em Brasília é resultado de um trabalho silencioso que antecede qualquer manchete. É luta feita na cozinha, na universidade, no sindicato, no terreiro, no bairro, na escola pública, nos grupos de resistência que transformaram dor em estratégia.

    A Marcha das Mulheres Negras nasceu formalmente em 2015, quando mais de cem mil mulheres ocuparam Brasília. Mas a verdade é que essa história vem de antes. Muito antes. Deriva das mulheres negras que lideraram quilombos, que criaram redes de solidariedade urbana, que organizaram frentes de trabalho informal, que sustentaram a economia doméstica, que criaram famílias inteiras sozinhas, que alfabetizaram vizinhos, que denunciaram violência policial quando ninguém escutava. Cada uma dessas trajetórias compõe o alicerce que sustenta o que vemos hoje. A marcha é a ponta visível de uma estrutura profunda.

    Em 2025, o tema é Reparação e Bem Viver. Reparação não como palavra confortável usada em discursos institucionais, mas como reconhecimento histórico das violências estruturais que foram impostas a esse grupo de mulheres. Reparação não é benefício, é acerto de uma dívida que fundou o país. É admitir que o Brasil se modernizou sem incluir plenamente a maioria das suas cidadãs. É enfrentar o legado de políticas públicas que aprofundaram desigualdades e naturalizaram sofrimento. E o Bem Viver não é ornamento linguístico. É o contrário do que sempre lhes foi oferecido. É a possibilidade de viver com dignidade, com segurança, com condições reais de existência plena.

    Essas mulheres são maioria na população brasileira. E ainda assim, continuam marchando. Continuam marchando porque quem deveria protegê-las muitas vezes as abandona. Continuam marchando porque violência policial ainda atravessa suas famílias. Continuam marchando porque a pobreza tem cor. Continuam marchando porque a abolição foi uma assinatura sem consequência. Continuam marchando porque a democracia ainda não se viu no espelho. Continuam marchando porque, no Brasil, os direitos delas são tratados como concessão e não como princípio.

    O que acontece hoje em Brasília não é apenas manifestação. É uma convocação moral. É uma aula que o país insiste em repetir porque não aprende. As mulheres negras marcham para garantir algo simples e gigantesco. Marcham para que sua humanidade não seja negociada. Marcham para que o direito ao estudo, ao território, à saúde, à cultura, ao trabalho digno, não seja exceção. Marcham porque sabem que se elas param, o país desaba. E marcham porque entendem que nenhum projeto de nação se sustenta ignorando a maioria de suas cidadãs.

    A pergunta que hoje atravessa Brasília é uma só. Quem se beneficia do atraso. Porque se a maioria do país precisa marchar ano após ano para exigir o básico, isso significa que a injustiça é mais do que falha. É método. A marcha desvela esse método e expõe o desconforto. Denuncia as instituições que falham. Interpela governantes que silenciam. Encurrala uma sociedade que prefere a narrativa da cordialidade à verdade da desigualdade. A marcha não é só denúncia. É diagnóstico.

    Mas é também futuro. A cada passo, elas afirmam que o Bem Viver não é utopia. É horizonte possível. É projeto coletivo. É o contraponto necessário a um país que produz estatísticas dolorosas com a mesma facilidade com que produz slogans vazios. O que vemos hoje é a insistência em afirmar que o que foi negado precisa ser finalmente garantido. É uma disputa de imaginação política. O Brasil insiste em imaginar um país que não existe. As mulheres negras marcham para lembrar que o país real precisa ser transformado e não apenas sonhado.

    Se Brasília hoje treme, não é pela quantidade de passos. É pela qualidade deles. Há algo profundamente pedagógico em assistir a uma multidão de mulheres negras marchando juntas. É como se cada uma carregasse um livro aberto em mãos, narrando a história que a escola não ensinou. A marcha é um monumento vivo que questiona a quem serve o silêncio. Não há neutralidade possível diante delas. Ou caminhamos junto ou assistimos de longe ao fracasso de mais um capítulo da nossa democracia incompleta.

    Hoje, 25 de novembro, Brasília é um laboratório do Brasil que podemos ser. A pergunta é se teremos coragem de ouvir o que essas mulheres dizem há séculos. Porque a marcha segue. A história, por enquanto, não.