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    Maria Bonomi, a arte de resistir (por Hubert Alquéres)

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    Há artistas que nos comovem pela beleza do que fazem; outros, pela coerência com que vivem. Maria Bonomi reúne as duas dimensões. Sua retrospectiva A arte de amar, a arte de resistir, em cartaz no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, é mais do que uma celebração de seus 80 anos de trajetória artística — é um manifesto sobre a força transformadora da arte e sobre a dignidade de quem nunca se afastou das grandes causas humanas.

    Nascida na Itália, em 1935, e chegada ao Brasil ainda menina, Bonomi construiu aqui uma trajetória que atravessa a história do país. Discípula de Yolanda Mohalyi e Livio Abramo, formou-se na gravura, mas logo a extrapolou. Seu gesto é o da artista que entende o ofício não como exercício técnico, mas como forma de pensar o mundo. A gravura, em suas mãos, torna-se símbolo de resistência: cada corte na madeira é uma tomada de posição, cada impressão é um testemunho. Gravando, ela afirma a presença, a persistência e o compromisso.

    Em suas próprias palavras, Maria Bonomi define a gravura como um “fenômeno perene mutante” — forma que nunca se esgota, porque nasce do embate entre o gesto e a matéria, entre o pensamento e o mundo, e que nela se faz também ética e invenção. Essa percepção atravessa toda a sua obra. A gravura é, para ela, linguagem, corpo e pensamento; uma ciência da sensibilidade.

    Ao longo das décadas, Maria Bonomi levou a gravura para além da oficina. Transformou o gesto artesanal em arte pública, fez da matriz um organismo que respira na cidade. Seus murais e painéis monumentais — na Estação da Luz, no Memorial da América Latina, em fachadas e praças de São Paulo — são capítulos de uma epopeia visual. Gravuras tornadas arquitetura, obras que se confundem com o cotidiano urbano e o enriquecem. A cidade, em sua obra, não é cenário: é matéria viva, é espaço de convivência e diálogo.

    Entre essas obras, há uma que ocupa lugar singular: o grande painel Propulsão (2023), criado para o Colégio Bandeirantes, em São Paulo — sua única peça concebida para uma escola e dedicada ao tema da educação. Com mais de seis metros de altura por sete de largura, a obra domina o hall de entrada e faz do espaço de passagem um território de pensamento. Inspirada pela ideia de que a arte é uma forma específica de conhecimento, Propulsão convoca os estudantes a refletirem criticamente sobre o próprio ato de aprender. Nela, instrumentos de cálculo e escrita se entrelaçam a formas e símbolos contemporâneos, como se o tempo da ciência e o tempo da imaginação se fundissem numa mesma matriz. Os alunos se apropriaram desse ambiente: é comum vê-los reunidos aos pés da obra, com cadernos e tablets, fazendo suas lições sob a presença silenciosa da artista. Poucas criações traduzem com tanta força o encontro entre arte e conhecimento.

    A juventude de Bonomi coincidiu com um momento em que a gravura era também uma linguagem política — usada para comunicar ideias e convocar consciências. Ela soube manter viva essa dimensão pública da arte, mesmo quando o país se fechava em silêncio. Ao longo do tempo, sua obra foi incorporando novas técnicas, novos suportes, novas urgências, mas sem jamais perder o vínculo ético com a liberdade.

    A exposição do Paço Imperial, com curadoria de Paulo Herkenhoff e Maria Helena Peres Oliveira, percorre esse itinerário com amplitude e delicadeza. São mais de 250 obras em onze salas — gravuras, relevos, esculturas e instalações que revelam a artista em permanente diálogo consigo mesma e com o tempo histórico. O título resume o sentido de toda uma vida: amar e resistir. Amar o ofício, a cidade, o humano. Resistir ao esquecimento, ao conformismo, à indiferença.

    Aos 90 anos, Maria Bonomi continua a pensar, a produzir, a falar com a energia de quem sabe que a arte é também uma forma de política — não partidária, mas existencial. Sua voz defende a autonomia criadora, a coragem de pensar com as próprias mãos, o poder civilizatório da beleza. Para ela, arte é também ciência e pensamento — uma maneira de conhecer o mundo e de participar dele. Essa ética do gesto e da criação faz dela uma das raras artistas cuja obra nos devolve fé na inteligência humana.

    Visitar a retrospectiva no Paço Imperial é reencontrar uma artista cuja obra não se consome no instante: permanece, como a marca deixada na matriz. Maria Bonomi gravou o mundo e deixou nele a sua impressão. Ver essa exposição é compreender que a arte, quando nasce de convicção, torna-se memória ativa — um ato de resistência e de esperança.

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    Hubert Alquéres é presidente da Academia Paulista de Educação e vice-presidente da Câmara Brasileira do Livro.