O Ministério Público Federal (MPF) investiga a denúncia de um suposto esquema de hackeamento de investigados dentro da Polícia Civil de São Paulo, no interior paulista. O órgão analisa uma série de documentos entregues por um hacker que afirma ter recebido dados sigilosos de policiais para invadir dispositivos de suspeitos e obter provas ilegais que teriam sido usadas em inquéritos.
O caso veio à tona após denúncia feita por um alvo da Operação Raio-X, deflagrada em agosto de 2020 contra suposto desvio de dinheiro em contratos entre prefeituras e organizações sociais. Após ter o celular apreendido por policiais, o médico Franklin Cangussu Sampaio, que era ligado ao ex-governador Márcio França (PSB), atual ministro do Empreendedorismo, passou a ser extorquido.
Leia também
-
Polícia prende “espião” que gravava presídios em SP com drones
-
Dupla ligada ao PCC é condenada a mais de 100 anos por agiotagem
-
Estação Oscar Freire: PM leva facada na cabeça em assalto e mata suspeito
-
Eduardo volta a atacar Tarcísio: “Candidato que Moraes quer”
Mais tarde, descobriu-se que o hacker Patrick Brito seria o responsável pelo crime. Em denúncia enviada à Procuradoria de Araçatuba, Brito disse ter conseguido as informações usadas para invadir o dispositivo do médico com a equipe do delegado Carlos Henrique Cotait, responsável pela Raio-X. Ele nega.
O envolvimento de policiais civis no suposto esquema de hackeamento foi apurado pelas corregedorias da Polícia Civil de Santos, Araçatuba e Iguape. Apenas o agente Edison Luís Rodrigues foi indiciado e afastado, sem levar em consideração as acusações apresentadas pelo hacker contra outros envolvidos.
O MPF entrou no caso em novembro do ano passado, após decisão da Justiça Federal de Santos, com base no entendimento de que, como os crimes teriam sido cometidos por alguém que vive fora do país — o hacker mora no leste europeu —, as suspeitas não poderiam ser investigadas no âmbito estadual.
Desde o início do ano, a procuradora da República Gabriela Saraiva Hossri analisa mais de 70 documentos apresentados por Brito. Em setembro, ela afirmou que o material “indica a possível participação de outros policiais civis” e cobrou o resultado de perícias técnicas para atestar a autenticidade das provas.
Ao longo dos últimos anos, a Corregedoria da Polícia Civil arquivou diferentes procedimentos sobre as denúncias feitas por Brito. O último deles foi instaurado em agosto de 2024, na Corregedoria Central de São Paulo, por determinação do secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite. Na ocasião, ele disse que o objetivo de seria garantir “total transparência” e “evitar a participação de policiais locais”.
No entanto, cerca de um ano depois, em 5 de setembro, o caso foi arquivado por decisão do corregedor-geral da Polícia Civil, João Batista Palma Beolchi.
Apuração preliminar
A apuração preliminar que investigou as denúncias de Brito na Divisão das Corregedorias Auxiliares foi instaurada em agosto, a partir de um pedido feito por um vereador de Bauru, com base em informações divulgadas por Brito. Na ocasião, ele entregou um ofício nas mãos do próprio Guilherme Derrite, que disse ser “o maior interessado em apurar o caso”.
Em entrevista a um canal no YouTube, em agosto do ano passado, Derrite disse que o procedimento abriria espaço para que o hacker fosse ouvido pela primeira vez. “Nós vamos entrar em contato com ele e convidar para que ele possa apresentar as provas de tudo o que ele fala. Eu garanto para vocês que, havendo participação de qualquer policial civil, isso será severamente apurado e haverá punição”, disse.
Brito foi ouvido em duas oportunidades e entregou vários arquivos, mas testemunhas arroladas por ele não foram chamadas para prestar depoimento. No relatório que pediu o arquivamento, os delegados responsáveis pela apuração citaram conclusões de outras investigações para dizer que as acusações de Brito não procediam. Na maioria dos casos, não menção a novas diligências.
Entre os documentos apresentados pelo hacker estavam prints de conversas com integrantes da equipe do delegado Cotait, como diálogos que manteve com a investigadora Cindy Orsi Nozu, hoje delegada da Polícia Federal (PF). Ela supostamente teria dado orientações para que Brito invadisse o dispositivo de suspeitos, inclusive do ex-governador Márcio França.
Sobre isso, o relatório diz apenas que são “acusações infundadas”, porque uma outra apuração preliminar já teria investigado o caso. O mesmo foi dito em relação ao comprovante de uma transferência bancária que teria sido feita pela policial para a avó de Brito. A apuração também não analisou mensagens suspeitas trocadas entre Brito e um escrivão. Segundo as investigações, elas seriam de cunho pessoal e não indicariam que o hacker teria colaborado com a polícia de forma ilícita.



Print apresentado por hacker mostra suposta conversa com investigadora Cindy
Reprodução
Print apresentado por hacker mostra suposta conversa com investigadora Cindy
Reprodução
Print apresentado por hacker mostra suposta conversa com investigadora Cindy
Reprodução
Após o Metrópoles questionar a Secretaria da Segurança Pública (SSP) sobre o andamento da apuração preliminar, na semana passada, a Delegacia Geral de Polícia prorrogou o afastamento do policial Edison Rodrigues por mais 180 dias, e também determinou a substituição do delegado seccional da Corregedoria Auxiliar de Araçatuba, Benildo da Rocha Souza Junior. Segundo a SSP, a decisão ocorreu a pedido dele.
Quem é o “hacker de Araçatuba”
- Patrick Brito foi preso pela primeira vez em 22 de janeiro de 2021, em Araçatuba, por invadir o celular do então prefeito da cidade, Dilador Borges (PSDB). Aos 27 anos, o hacker tentou extorquir o político, pedindo R$ 70 mil para não divulgar informações comprometedoras.
- Após a prisão, ele teria sido chamado para uma conversa com o delegado Carlos Henrique Cotait, na sede da Divisão Especializada de Investigações Criminais (Deic).
- Brito afirma que, na ocasião, o policial teria prometido “aliviar” no inquérito sobre as extorsões, caso ele ajudasse a “prender pessoas” em outras apurações. O rapaz teria concordado e deixou a delegacia com R$ 10 mil e seu passaporte, que haviam sido apreendidos.
- O hacker diz que, a partir desse momento, passou a atuar para a equipe de Cotait, indo algumas vezes à delegacia para trocar informações sobre investigados e depois colaborando à distância, após se mudar para a Sérvia.
- Ele afirma, inclusive, que era remunerado pelos serviços, por meio da entrega de envelopes com dinheiro deixados na casa de sua mãe, na periferia de Araçatuba.
- Com o objetivo de comprovar sua relação financeira com os policiais, juntou a diferentes inquéritos um comprovante de transferência bancária de R$ 60 feita pela investigadora Cindy Orsi Nozu, braço direito do delegado, para uma conta da avó de Patrick.
- Em áudio enviado a um colega em 2022, a mulher disse que fez o depósito porque ficou “com dó” de Brito. Segundo ela, ele estava “dormindo na rua” por não pagar o aluguel.
- A transcrição da gravação consta de um outro inquérito, da Polícia Federal, que apura uma suposta fraude cometida pela investigadora, com ajuda do hacker, em um concurso em que ela pretendia ser aprovada como delegada da instituição.
Suposto serviço a policiais civis
A invasão do celular do médico Franklin Cangussu, que fez com que Patrick Brito fosse descoberto, teria ocorrido a partir de uma determinação do delegado Carlos Henrique Cotait, como indicam os prints de conversas entre o hacker e a investigadora Cindy.
“Levanta tudo o que você conseguir dele e me avisa”, escreveu a policial. Questionada por Brito, a mulher disse que essa teria sido uma determinação de Cotait: “Foi ele quem falou para te passar”.
Dias depois, após o hacker enviar uma série de informações sobre Cangussu, Cindy diz que estava usando o material para fundamentar um mandado contra o médico, com o objetivo de atingir o então governador Márcio França.
“Já estou escrevendo um relatório que já passou de cinquenta páginas e a gente vai usar para pedir a prisão preventiva do Cangussu para ver se ele delata o Márcio França”, afirmou, segundo os prints das mensagens entregues pelo hacker. Ela ainda teria sugerido que Brito hackeasse o próprio político: “Será que não dá para hackear o Márcio França direto, haha”.
Além de ter os dispositivos invadidos, Cangussu passou a ser extorquido pelo hacker e começou a desconfiar do envolvimento dos policiais que aprenderam seu celular. Ele, então, registrou uma denúncia na Divisão de Crimes Cibernéticos (DcCiber).
Ao descobrir a existência desse inquérito, que defendeu a instauração de um procedimento na corregedoria, a equipe de Cotait fez um relatório dizendo que Patrick Brito havia invadido um drive usado pela polícia e tido acesso a arquivos sigilosos. Mais tarde, o delegado colocaria a culpa no agente Edison Rodrigues, com base em uma foto tirada dentro da delegacia da tela do celular de Cangussu, que teria possibilitado hackeamentos.
“Bode expiatório”
Sentindo-se “rifado” por parceiros no esquema de hackeamento, Patrick Brito decidiu denunciar os policiais, dando detalhes sobre a operação. O envolvimento da Polícia Civil foi confirmado pela primeira vez em setembro de 2022, em inquérito da Corregedoria de Santos cujo relatório foi encaminhou à Corregedoria de Araçatuba.
Dois meses depois, em novembro daquele ano, o órgão concluiu sua investigação sobre o caso, apontando exclusivamente o envolvimento de Edison Rodrigues, sem mencionar crimes praticados pelo restante da equipe de Cotait. Segundo Brito, o delegado teria influenciado no inquérito, e seu subordinado teria sido usado como “bode expiatório”.
Questionado pela reportagem, Cotait disse que Brito está mentindo e que as conversas com outros policiais são “montadas”. O delegado afirmou que não é investigado pelo MPF e que nenhum dos procedimentos instaurados até hoje conseguiram provar seu envolvimento no suposto esquema.
“O Patrick [Brito] passou a me perseguir e responde a um inquérito por stalking. Eu não sou investigado em nenhum procedimento. Pois eu descobri os crimes praticados por Patrick e Edison e mandei apurar na Corregedoria”, afirma. Segundo ele, o arquivamento da apuração preliminar seria mais um indicativo de que o hacker mente.
O Metrópoles tentou contato com o policial Edison Rodrigues, por meio de seu advogado, que preferiu não se não manifestar.
Patrick Brito foi preso na Sérvia em dezembro de 2022, após entrar na lista de difusão da Interpol. Ele passou um ano detido em regime fechado e foi transferido para o domiciliar, enquanto aguarda a decisão sobre sua extradição. O hacker também tenta obter asilo do governo sérvio.
Em nota, os advogados Paulo Klein e Leonardo Tajaribe Júnior dizem acreditar no reconhecimento de “todas as ilegalidades que revestiram a investigação” e na absolvição do hacker.
“A defesa técnica de Patrick Brito tem absoluta convicção de que os graves fatos noticiados por seu constituinte serão, ainda que tardiamente, devidamente apurados pelos órgãos correcionais da Polícia Civil de São Paulo. De outro lado, nós confiamos que o Tribunal de Justiça de São Paulo também reconhecerá todas as ilegalidades que revestiram a investigação e a consequente condenação dele, o que certamente culminará na nulidade do processo e a respectiva absolvição”, afirmam.
O que diz a Polícia Civil
Por meio de nota, a SSP afirmou que a Polícia Civil “respeitou o sigilo necessário ao caso” e que o “relatório final da apuração preliminar concluiu que as denúncias de irregularidades não foram comprovadas”.
“Esse relatório apresentou a síntese das conclusões obtidas ao longo do procedimento, que possui mais de 1,1 mil páginas e de 1 mil anexos. A divulgação de conclusões de procedimentos desta natureza depende de análises posteriores e segue os limites legais e o sigilo funcional, em observância à legislação vigente e à preservação da lisura das apurações internas”, concluiu.


