A investigação que desmontou uma fábrica clandestina de armas no interior paulista, que tinha entre seus clientes a facção criminosa Comando Vermelho (CV), também identificou a rede paralela de transporte criada para movimentar peças de fuzis e pistolas, sem chamar atenção, entre diferentes cidades.
Se a linha de produção impressionou pelo nível industrial, como é apontado em relatório da Polícia Federal (PF), a logística dos criminosos mostrou o outro lado da profissionalização do esquema, feito de forma discreta, fracionada e pautada por deslocamentos rápidos.
Os autos do caso mostram que a cadeia não dependia apenas da usinagem sofisticada das máquinas. Dependia também de gente que levava e trazia peças, moldes, blocos e kits desmontados, muitas vezes durante a madrugada. Policiais que acompanharam a investigação descrevem que “a fábrica não parava nos limites do galpão, ela continuava pelos carros, pelas mochilas e pelas rotas escolhidas”.
Peças de armas eram projetadas e feitas clandestinamente
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Armamento era montado em Bunker no interior de SP
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Ação conjunta da PF e PM apreendeu dezenas de fuzis
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Armamento era negociado com criminosos
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Um dos supostos clientes do grupo seria o Comando Vermelho
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Supeitos com formação técnica trabalhavam para quadrilha
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Dono de fábrica consta entre os investigados
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Arte Alfredo Henrique/Metrópoles
Rotas curtas e saídas rápidas
Mensagens interceptadas mostram uma fração da logística de transporte dos criminosos. Em uma delas, um dos operadores escreve que precisa “deixar uma parada em Piracicaba [interior de São Paulo] antes das seis”, enquanto outro orienta que o “material pequeno vai com o cara da Sumaré [referência à outra cidade do interior paulista]”.
As rotas, como mostra a investigação obtida pelo Metrópoles, se repetiam entre as cidades paulistas de Santa Bárbara d’Oeste, onde ficava a fábrica descoberta pela PF, Piracicaba, Limeira, Sumaré, Campinas e Rio de Janeiro (RJ).
A PF identificou pelo menos três motoristas informais, que apareciam nas conversas sob apelidos. Um investigador descreveu que esses colaboradores funcionavam como “mulas técnicas”, porque sabiam exatamente o que estavam levando. Eles também recebiam instruções para posicionar as peças de forma a passar despercebidos em eventuais abordagens policiais.
Madrugada e entregas fracionadas
De acordo com os relatórios, os deslocamentos quase sempre ocorriam entre 23h e 5h, período em que o fluxo rodoviário é mais baixo e há menor chance de patrulhamento ostensivo. Peças maiores — como caixas de ferrolho, pistões e canos — eram enviadas desmontadas, divididas em lotes menores.
Em uma das mensagens reproduzidas pela perícia, um dos investigados orienta: “Leva só as quatro hoje. O resto mando amanhã com o outro cara.” Essa divisão, como identificou a PF, evitava que uma única viagem carregasse material suficiente para caracterizar o conjunto completo de uma arma.
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“Esquema de transporte”
A descoberta do esquema de transporte, pela PF, não foi imediata. No início da investigação, os agentes focavam na estrutura metalúrgica, na qual as peças das armas eram produzidas. Mas ao cruzar dados de geolocalização, imagens de câmeras urbanas, mensagens com datas e horários, extratos de abastecimentos, além de deslocamentos inconsistentes, a PF percebeu que havia trânsito constante de membros da quadrilha entre as cidades.
“Os deslocamentos registrados indicam transporte deliberado de peças usinadas, não compatível com visitas pessoais ou rotinas comuns”, destaca trecho do relatório de investigação.
Um policial ouvido no processo resumiu que a quadrilha operava com a “logística de uma empresa, só que para armas”, organizando-se com “horário, estoque, entrega e retorno”.
Projetos eram posteriormente executados em fábrica no interior paulista
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Armas eram projetadas em 3D
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Armas eram montadas no interior de SP
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Armas eram repassadas para facções no Rio e nordeste
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Peças eram feitas com maqunário de fábrica que deveria produzir peças aeroespaciais
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Armas custavam entre R$ 8 mil e R$ 15 mil
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Quem fazia o transporte
- Gabriel Carvalho Belchior — proprietário da fábrica em Santa Bárbara d’Oeste. Suas viagens a Sumaré e Piracicaba são citadas como compatíveis com transporte de peças entre etapas da produção.
- Anderson Custódio Gomes — além de programar arquivos e projetos, aparece em mensagens combinando entregas de kits e orientando onde deixar certos componentes. Ele escreve, em uma das instruções: “deixa com o cara do portão dos fundos, ele sabe”.
- Janderson Aparecido Ribeiro de Azevedo — operador da fábrica, aparece em deslocamentos coincidentes com dias em que peças novas entraram ou saíram do galpão.
- Wendel dos Santos Bastos — intermediário de pagamentos, também coordenava envios. Uma das mensagens diz: “amanhã eu passo e pego o miolo [de uma arma], deixo o resto com ele”.
Elo com compradores do Rio
O processo do caso mostra que, pelo menos, um dos compradores dos fuzis produzidos no interior paulista estava no Rio de Janeiro. Diversas mensagens fazem referência ao “cara do RJ” e ao envio em etapas.
“Esse aqui vai pro mesmo cara do RJ, fala para ele que tá o mesmo valor do último”, diz uma das mensagens interceptadas pela PF.
Segundo um dos relatórios, peças eram enviadas desmontadas em viagens feitas por condutores já conhecidos do grupo.
Veículos usados
A PF identificou que os investigados alternavam veículos frequentemente. Usavam carros de familiares, além de veículos alugados ou emprestados. O objetivo, como investigaram os agentes federais, era evitar padrões. Para isso, as peças dos fuzis eram escondidas dentro de caixas de ferramentas, sacolas de mercado, mochilas técnicas e estojos de instrumentos de medição, como se fossem acessórios industriais legítimos.
A linha de produção da fábrica clandestina já mostrava uma estrutura consolidada. Mas foi a logística — discreta, bem planejada e com rotas curtas — que permitiu que a quadrilha mantivesse abastecimento regular de insumos, remessas constantes de peças e entrega precisa aos compradores.
A produção, como resumiu um dos responsáveis pelo caso, “era sofisticada”. Aliada à logística, “mantinha o negócio vivo”.
