Enquanto o Rio de Janeiro registrava 121 mortos em uma única operação policial, o Guará, em Brasília, presenciava fenômeno radicalmente diverso. Entre outubro e novembro de 2025, três investigações, quatro prisões, nenhuma morte, tampouco disparo. Apenas trabalho de inteligência, paciência metodológica e execução planejada.
A história que se segue não é produto de sorte, mas de rigor profissional. Nos últimos dois meses, a 4ª Delegacia de Polícia coordenou investigações que, estruturadas com dedicação técnica, produziram resultados concretos com segurança pública.
Apenas trabalho investigativo, quando estruturado com rigor e dedicação, produz resultados que simultaneamente servem à Justiça, protegem vítimas e resguardam a segurança comunitária sem necessidade de violência letal.
A primeira operação, denominada Sentinela, resultou na prisão de criminoso responsável por estupro mediante grave ameaça com emprego de arma branca. O delito foi consumado em 16 de outubro e o agressor, um homem de 41 anos com múltiplas passagens por crimes violentos, foi capturado dois dias depois.
A segunda, Operação Guardiã, levou à prisão de indivíduo responsável por abuso sexual infantil prolongado por seis anos, com apreensão de material pornográfico e arma de fogo não registrada.
A terceira, Operação Madrugada Silenciosa, resultou na prisão de criminoso responsável por série de quatro furtos qualificados em 10 dias, executados mediante análise de câmeras de segurança e cruzamento de dados.
Cada operação exemplifica dimensão distinta de investigação criminal competente. Em conjunto, constituem demonstração prática de que é possível resolver crimes graves sem confronto armado.
Essas operações adquirem significado contextual quando inseridas na crise contemporânea de segurança pública brasileira. Conforme o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, registraram-se 6.416 óbitos decorrentes de intervenções policiais em 2020, representando aumento bruto de 190% desde 2013.
Esses números refletem políticas essencialmente reativas, com investimentos insuficientes em inteligência policial e planejamento estratégico de longo prazo.
A resposta tradicional tem sido intensificar força bruta. A alternativa apresentada aqui privilegia aumento de inteligência. As operações Sentinela, Guardiã e Madrugada Silenciosa não surgem do acaso.
Emergem de compreensão sistemática de que investigação criminal competente é incompatível com improviso e violência desnecessária, mantendo compatibilidade absoluta com tecnologia, profissionalismo e rigor metodológico.
Operação Sentinela: 48 horas para neutralizar ameaça
Na madrugada de 16 de outubro de 2025, uma mulher de 25 anos foi atacada nas proximidades de estabelecimento comercial na Candangolândia. O crime foi brutal: estupro mediante grave ameaça com emprego de arma branca. O agressor, em situação de rua, evadiu-se do local sem deixar rastros evidentes. Quarenta e oito horas depois, estava detido.
A investigação coordenada trabalhou ininterruptamente. Não houve dramaticidade, mas execução técnica precisa: análise minuciosa de imagens de câmeras de segurança, mapeamento de rota de fuga, cruzamento de dados, reconhecimento formal pela vítima.
Cada elemento material foi documentado adequadamente e as testemunhas foram ouvidas oficialmente. Laudos do Instituto Médico Legal e antecedentes criminais do investigado foram coligidos sistematicamente, formando acervo probatório sólido.
Em 18 de outubro de 2025, o cumprimento do mandado de prisão temporária ocorreu no Núcleo Bandeirante. Durante a abordagem, apreendeu-se lâmina de faca compatível com a arma utilizada no delito.
O investigado, com 41 anos de idade e múltiplas passagens por crimes violentos, permaneceu à disposição da Justiça por 30 dias para aprofundamento investigativo. Destaca-se que o indivíduo era suspeito de vários outros delitos graves no Distrito Federal, evidenciando alto grau de periculosidade e padrão consolidado de violência contra mulheres.
Nesse contexto, sua permanência nas ruas representava risco concreto para potenciais vítimas. Dois dias. Uma prisão. Nenhum disparo. Crime hediondo resolvido mediante inteligência investigativa.
Operação guardiã: proteção integral à criança
Delitos de natureza sexual frequentemente ocorrem distantes dos olhos públicos, perpetrados no âmbito doméstico, protegidos pelo silêncio das vítimas e pela confiança traída. A Operação Guardiã, deflagrada em 15 de outubro de 2025, expôs precisamente essa realidade.
Uma menina, atualmente com 16 anos, foi sistematicamente abusada sexualmente desde os 10 anos de idade. O agressor, padrasto com 36 anos de idade, aproveitava-se da posição de autoridade. Mantinha convivência estável com a progenitora há oito anos.
A violência era simultânea, física e psicológica. Ele a privava de oportunidades educacionais, controlava comunicações e isolou-a completamente do núcleo familiar. A situação atingiu ponto crítico quando a adolescente tentou suicídio utilizando arma de fogo que o agressor mantinha ilicitamente.
Arma de calibre .32 sem registro no Sistema Nacional de Armas (Sinarm), guardada em chácara particular. O ato não foi consumado somente porque filha de três anos chorou.
O caso emergiu através de depoimento especial sob protocolo estabelecido pela Lei nº 13.431/2017, que garante escuta protegida a crianças e adolescentes vítimas de violência.
A adolescente foi entrevistada de forma humanizada, preservando integridade psicológica. Com fundamentação no acervo probatório coligido, a Vara de Violência Doméstica e Familiar contra Criança e Adolescente expediu mandado de prisão temporária. Cumpriu-se a ordem judicial. Apreenderam-se dispositivos eletrônicos para perícia técnica, possibilitando recuperação de mensagens com pornografia infantil, imagens de nudez e material erótico.
O investigado permaneceu recolhido na carceragem da 4ª Delegacia de Polícia. Crime hediondo. Investigação completa. Família protegida. Nenhum helicóptero foi necessário. Apenas trabalho competente, documentação rigorosa e proteção integral à criança.
Operação madrugada silenciosa: inteligência territorial
Em 12 de novembro de 2025, às 02h04, criminoso arrombou porta de vidro de estabelecimento comercial no Polo de Modas do Guará. Dois minutos depois, saía portando notebook. Superficialmente, tratava-se de furto ordinário. Não era.
A equipe de investigação conhece a região profundamente. Compreende os criminosos atuantes, os padrões operacionais. Ao analisar imagens captadas, identificou-se imediatamente Diego de Oliveira Rocha, maior autor de furtos da região. Seu histórico recente era precisamente conhecido: somente em novembro de 2025, consumou quatro furtos noturnos. Todos documentados em vídeo e identificados.
Em 2 de novembro de 2025, invadiu-se estética automotiva, subtraindo aspirador industrial, estepe e bicicleta. Em 8 de novembro de 2025, arrombou-se instituição religiosa de assistência social, furtando eletrodomésticos e equipamentos. Em 10 de novembro de 2025, invadiu-se restaurante, subtraindo eletrônicos e numerário.
Em 12 de novembro de 2025, consumou-se o furto no Lord Burguer. Quatro delitos em 10 dias. Modus operandi invariável: madrugada, arrombamento, estabelecimentos comerciais. Diego havia transformado a criminalidade em ocupação sistematizada.
Equipes foram destacadas para localização. O criminoso foi avistado na linha do trem, empreendeu fuga ao avistar polícia, penetrou em vegetação densa. Buscas continuaram.
Por volta das 18h30, foi localizado na Praça do Arerê. Prisão em flagrante consumou-se sem incidentes. Contextualmente, Diego encontrava-se em prisão domiciliar desde dezembro de 2017. Descumpria sistematicamente a medida para praticar novos delitos.
Morador de rua, destituído de endereço fixo e vínculos sociais. Medidas cautelares tradicionais se mostravam ineficazes para seu controle. Representação foi feita pela conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva. Não por vindicta, mas por análise fria: solto, reincidiria. A sequência de 10 dias constituía prova irrefutável dessa trajetória.
Os pilares estruturantes
As três operações apresentam características estruturantes comuns. Primeiro, tecnologia. Em todos os casos, câmeras de segurança constituíram recurso essencial. Isoladamente, porém, equipamento não prende criminoso algum. Exige-se pessoal treinado para análise de imagens, identificação de padrões, reconhecimento de características faciais.
Segundo conhecimento territorial. Identificar criminosos reincidentes, compreender seus modus operandi, mapear territórios de atuação não resulta de improviso. Constrói-se por intermédio de permanência prolongada na região, observação sistemática e documentação. Terceiro, documentação rigorosa.
Todos os elementos probatórios necessitam de registros adequados. Cada testemunha deve ser ouvida formalmente e o laudo pericial deve ser solicitado. Objetivo é construir processos sólidos que resultem em condenações duradouras, não apenas em prisões temporárias.
Quarto, trabalho integrado. Parcerias com setores de segurança especializados, articulação com instituições judiciárias para expedição rápida de mandados, coordenação com órgãos periciais.
Instituições públicas exercendo sua competência específica. E, finalmente, zero violência. Nenhuma morte. Nenhum tiroteio. Nenhuma operação de guerra. Apenas polícia investigativa exercendo sua função adequadamente.
Divergências e modelos
A decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 635 estabeleceu diretrizes estruturais para segurança pública que se alinham precisamente com metodologia aplicada nas três operações.
O STF determinou que investimentos federais devem priorizar inteligência, informação e operações, com especial ênfase em políticas preventivas baseadas em inteligência policial vocacionadas à redução simultânea de criminalidade e letalidade.
Essa determinação não emerge aleatoriamente; surge de compreensão consolidada de que inteligência e redução de violência constituem componentes essenciais de segurança pública moderna.
Sistemas policiais que investem em inteligência, análise de dados e investigação prolongada produzem resultados superiores àqueles centrados em operações espetaculares.
Conforme análise do Observatório das Desigualdades (Fundação João Pinheiro), tecnologias de controle de força policial, como câmeras de monitoramento e sistemas integrados de informação, representam pauta incontornável de segurança pública contemporânea.
Sistemas desse tipo, quando integrados a investigação competente, produzem simultaneamente redução de violência institucional e aumento de efetividade investigativa.
Não existe conflito entre investigação profissional e redução de casualidades; existe, pelo contrário, sinergia. Investimento em inteligência reduz necessidade de confrontação.
Redução de confrontação reduz mortalidade. Redução de mortalidade incrementa legitimidade comunitária. Incremento de legitimidade multiplica cooperação. Cooperação aumentada eleva efetividade investigativa. Constitui ciclo virtuoso.
Conclusão e perspectivas
As Operações Sentinela, Guardiã e Madrugada Silenciosa representam escolha consciência de modelo de segurança pública. Modelo que privilegia investigação sobre confrontação, inteligência sobre força bruta, planejamento sobre improviso. Não constitui romantismo; representa pragmatismo fundamentado em evidência científica e funcionamento verificável. Delitos resolvidos. Criminosos capturados. Vítimas protegidas. Comunidade segura. Sem derramamento desnecessário.
Enquanto o Rio de Janeiro despende R$ 10,3 bilhões em segurança e promove operações que geram 121 mortos sem resolver criminalidade estrutural, Brasília pode selecionar trajeto alternativo. Pode investir em investigação prolongada, inteligência policial substantiva, sistemas de monitoramento articulados. Tal investimento custa fração do orçamento direcionado a megaoperações.
A decisão compete às instituições e à sociedade. Brasília permanece capacitada para evitar reprodução de modelo carioca. As operações apresentadas demonstram viabilidade de abordagem alternativa.
A polícia investigativa, quando estruturada com profissionalismo e dedicação, resolve delitos graves sem recurso a violência. Portanto, é possível ser efetivo sem ser letal. A segurança pública fundamentada em inteligência funciona adequadamente. O Brasil deveria considerar essas lições como modelo institucional para a solução de crimes com inteligência policial e zero letalidade.
- Herbert Léda é delegado da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), lotado na 4ª Delegacia de Polícia (Guará). Bacharel em direito, tem pós-graduação em Direito Público e em Gestão da Segurança Pública. Advogado (2009-2015), é autor do livro A Investigação Criminal Realizada Diretamente pelo Ministério Público
