Quando uma amiga me disse que eu era corajosa por me dispor a escrever a biografia de Lucio Costa, me senti meio ofendida, algo diminuída. Com meu raciocínio de tartaruga, me perguntei bem depois: “Como assim? O que ela quis dizer com isso?”.
Passado mais de ano daquela desconfiança lançada como pedra de estilingue, reconheço que a amiga tinha certa razão, não porque eu desconfie da minha capacidade, mas porque a tarefa biográfica é por demais extenuante, ainda mais se o biografado viveu 96 anos, e desde jovem esteve no centro das principais discussões sobre a arte, a cultura e a identidade brasileiras.
Que conviveu, entre tantos outros, com Carlos Drummond de Andrade, Rodrigo M.F. de Andrade, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Portinari, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Pedro Nava, nomes do melhor do Brasil no século XX.
Não citei nenhum arquiteto porque Lucio espraiou sua influência para muito além da arquitetura e do urbanismo.
Depois de consultas a mais de uma centena de livros e teses, de percorrer os jornais brasileiros de todo o século XX, olho do sopé da montanha e vejo a muralha que terei de escalar, porque agora começo a escrever, e fico pensando que a amiga tinha lá sua razão, é preciso certo destemor pra topar essa parada, ou mesmo uma certa ignorância quanto ao tamanho da encrenca.
Tudo que o penso, vivo e faço gira em torno do meu biografado.
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Até mesmo a crônica semanal fica difícil de escrever porque tudo o que penso, ouço e vejo me remete a Lucio Costa. É uma biografia, mas tem os sintomas de uma paixão.
E com seus muitos percalços. Mesmo sendo um dos personagens mais importantes do pensamento brasileiro do século XX, no fim das contas, meu biografado é apenas um ser humano. É essa a perplexa beleza de acompanhar a vida de alguém que esteve nas páginas de jornais e revistas, no mínimo um vez por semana, durante quase 70 anos. Percorro a vida de uma pessoa, percorro um século da vida de um país.
A biografia é uma tarefa impossível, posto que ninguém será de todo jamais revelado, nem mesmo para os mais próximos, nem mesmo para si mesmo, por que então gastar tanto neurônio em torno de uma única pessoa? Porque o existir é uma inacreditável e espinhosa aventura para qualquer um de nós viventes.
No caso de Lucio Costa, porque ele não é apenas ele mesmo.
Talvez ele seja, olhando em perspectiva, o reflexo de um tempo, de um pensamento, de uma arquitetura, de um país e de uma cidade. E essa cidade não é Brasília, é o Rio de Janeiro, embora os cariocas nem lhes dê a devida atenção. E têm motivos pra isso: na cabeça deles, Lucio Costa lhes roubou os três poderes da capital da República.
Pobre Lucio, apenas se inscreveu no concurso da nova capital de um modo quase despretensioso, como quem se desvencilha de “uma solução possível, que não foi
procurada mas surgiu, por assim dizer, já pronta”.
Outra coisa que tenho aprendido: embora reverenciado por todos esses nomes acima citados, e por muitos mais, Lucio também teve e tem detratores, inimigos, gente que tem birra dele e com suas razões. E que bom que seja assim, porque senão eu corria o risco de fazer não biografia mas uma hagiografia. É a contradição que reina em todos nós que nos faz verdadeiros.
Sempre fiquei muito intrigada com a arte de representar uma outra pessoa – seja no teatro, no cinema, na literatura, na novela – coisa que pra mim é o mais sofisticado e impossível dos ofícios.
Escrever a biografia de Lucio Costa está me dando a chance de me aproximar perplexa, curiosa, divertida, irritada, ansiosa, temerosa e intensamente de um ser humano, como raras vezes me aproximei. É quase um grande amor.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.
