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Quanto vale o seu eu digital? (por Vera Lúcia Raposo)

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Quanto vale o seu eu digital? (por Vera Lúcia Raposo)

A economia contemporânea é movida por dados. Tudo o que fazemos — comunicar, viajar, consumir, trabalhar — gera rastros digitais que se converteram no principal recurso econômico do século XXI. Até o mero ato de dormir se torna fonte de dados, caso a pessoa durma com um smartwatch no pulso ou outro wearable junto ao corpo.

Os dados são hoje o novo petróleo, mas também a nova forma de poder. Empresas e governos extraem, cruzam e analisam volumes inimagináveis de informação, para prever comportamentos, condicionar escolhas, antecipar riscos e tomar melhores decisões (melhores para quem, é o que resta saber). Vivemos num contexto de vigilância difusa, em que plataformas digitais, dispositivos de identificação biométrica, mecanismos de geolocalização e outros múltiplos aparelhos e tecnologias constroem uma teia de observação permanente.

Os riscos associados a esta nova “ordem informacional” são múltiplos. A vigilância algorítmica e as decisões automatizadas ameaçam reduzir o ser humano a um conjunto de padrões estatísticos, reproduzindo discriminações (os chamados “enviesamentos”). A opacidade dos sistemas de inteligência artificial levanta dúvidas sérias sobre o direito à informação e à explicação, pilares de um Estado que se pretende de direito. Mesmo os dados ditos “anonimizados” podem ser reidentificados em ambientes de big data, expondo de várias formas o indivíduo ao olhar intrusivo da tecnologia.

A privacidade tornou-se um bem escasso, constantemente negociado num mercado em que a bolsa de valores negocia informação e, numa versão mais dramática, seres humanos. A erosão da privacidade resulta de pequenas concessões diárias: aceitamos cookies, partilhamos dados, cedemos autonomia em troca de conveniência. Quanto mais transparente o cidadão se torna, mais opaco se torna o poder que o observa.

Nada disto é inevitável. Os governos podem optar por abrandar o ritmo económico, hoje sustentado pelo desenvolvimento tecnológico e pela recolha massiva de dados. Os cidadãos, por outro lado, podem escolher deixar de ser o produto e o alvo passivo de informação selecionada por algoritmos para passarem a ser consumidores conscientes de conteúdos escolhidos livremente.

Tal mudança, porém, tem um preço. Para os governos, significa aceitar a desaceleração econômica e uma posição menos competitiva no cenário internacional. Exige também um reajustamento cultural profundo: estarmos dispostos a pagar para que as plataformas não nos interrompam a cada cinco minutos com publicidade personalizada; a limitar as permissões das aplicações, mesmo que isso torne a experiência digital menos fluida; e a evitar a partilha de dados sensíveis nas redes sociais, ainda que nos custe alguns likes.

Outras concessões — estas bem mais prementes — terão ainda de ser feitas: políticas públicas menos informadas, logo, potencialmente menos eficazes; diminuição na capacidade de combate à criminalidade, devido à escassez de informação disponível; menos dados para melhorar cuidados médicos e desenvolver tratamentos inovadores. Não seria um regresso às cavernas, mas um passo atrás na evolução civilizacional. Podemos viver com menos likes, mas poderemos viver com menos ciência?

Proteger a privacidade e reconquistar o controle sobre os nossos dados implica escolhas difíceis. O futuro digital será, em larga medida, o reflexo do tipo de compromissos que estivermos dispostos a aceitar.

 

(Transcrito do PÚBLICO)

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