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    Salada de ideologia e o dono da livraria

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    Luis caminhava na livraria afobado e indeciso, a festa começou no almoço, o dia já adormecia e não decidia. Navegava no mar de títulos sem norte. Qual assunto abraçaria Bruna? Descartou clássicos e autoajuda, achou que filosofia pop desatava a dúvida. Talvez essas obras, que aproximam um autor das questões do cotidiano, incentivassem outros mergulhos literários. Gostava de celebrar aniversários com livros, o hábito começou depois da  pandemia. Desde então, não recordava um comentário sequer sobre um presente. Insistia.

    Uma capa prometia encaixar o estoicismo no dia a dia. Lembrou das últimas conversas com Bruna e aceitou o instinto apressado. Um homem de cabelos encaracolados e grisalhos ao redor dos cinquenta anos se aproximou e disse, “Estoicismo está na moda”,Luis respondeu “É verdade”, e o homem completou,  “É um jeito de lidar com a realidade, aceitar que não temos controle de nada a não ser de nossas próprias ações”. Luis se dirigiu ao caixa aliviado.

    Celso era o nome dele, era o dono da livraria, a única do bairro.  Uma loucura abrir uma livraria em 2025, mas era seu sonho, disse. Luis teve a impressão que a frase ocultava pitadas de ressentimentos. Celso achou que venderia mais por estar em um bairro de classe média alta. Começara há apenas três meses.”A ansiedade está sempre em conflito com o tempo, ainda mais com dinheiro”, filosofou o livreiro,

    “Nenhum governo investe em educação de verdade né, somos um país de analfabetos funcionais e a coisa só vai piorar”, lamentava Celso. Luís só concordou com a cabeça.

    “Mesmo assim, acho que está melhorando em algumas coisas. O pessoal critica, mas o Bolsa Família faz milhões de pessoas comerem e obriga as crianças a irem para escola. Tem gente que se aproveita e faz o errado, claro que tem, mas não desmerece o programa”

    Luís repetiu sua melhor história sobre o direito, a do Zezinho, que era porteiro e frequentavam o mesmo boteco. Zezinho costumava passar um mês de férias em sua cidade baiana do interior. Antes do Lula, era um mês de rei, pagava tudo pra todos. Depois de Lula, passava quinze dias e voltava liso. Mesmo com tantos problemas, a vida na sua cidade melhorou.

    “É isso, a filha da faxineira de casa está fazendo USP, é muito esforçada, mas entrou pelas cotas, você sabe como é. Mas é muito inteligente, conheço desde pequena. Tá namorando uma moça muito legal, a mãe não gostou no começo, mas defendi, falei que cada um é cada um e o que importa é quem ela é de verdade”, disse o livreiro. Luís coçou a cabeça como quem tenta dissipar um leve curto-circuito no cérebro.

    Celso perguntou se embrulhava para presente, Luis respondeu que sim. Enquanto arrumava o laço, baixou a voz como quem confessa um segredo: “Mas posso te falar uma coisa? Bom mesmo era na época dos militares. Não tinha bagunça não, vagabundo respeitava. PCC e Comando Vermelho não tinham vez.

    Luis ficou bem confuso enquanto Celso digitava o valor na maquininha. Por onde começava? Falava dos mortos e torturados pela ditadura? Da ausência de liberdade de expressão, dos anos sem eleições diretas? Da dívida desastrosa que o milagre econômico criou? E o fracasso das intervenções militares no Rio? E os privilégios? E os corruptos de farda que vendem armas e munição aos bandidos? Na labirintite de ideias e sentimentos que lhe dominava, arriscou com educação: “Acho difícil acreditar nos militares depois da tentativa de golpe… No crédito, por favor”

    Celso levantou a voz: “Isso é coisa daquele inútil do Bolsonaro e sua família de aproveitadores”

    Só restou a Luís pagar e fazer cara de Nazaré calculando. Agradeceu e correu pro aniversário.