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    Símbolo da COP30, hospital contrata empresa de filhos do presidente da instituição

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    Único hospital filantrópico apoiado diretamente pelo Ministério da Saúde em Belém para garantir suporte à demanda decorrente da realização da COP30, o Beneficente Portuguesa tem como um de seus principais fornecedores de equipamentos médicos uma empresa pertencente aos filhos do presidente do hospital.

    O ministro Alexandre Padilha esteve lá pessoalmente, no fim de julho, para anunciar a liberação de recursos federais para a compra de mais equipamentos para o hospital. Depois, retornou para nova visita, no mês passado. Procurado, o Ministério da Saúde informou que não é responsável pela fiscalização de relações de fornecedores de entes privados que não estão relacionadas ao atendimento público (leia a nota na íntegra ao fim desta reportagem).

    Alírio Gonçalves, presidente do Beneficente Portuguesa, e o ministro da Saúde, Alexadre PadilhaAlírio Gonçalves, presidente do Beneficente Portuguesa, e o ministro da Saúde, Alexadre Padilha

    O Beneficente Portuguesa assinou dois convênios com o Ministério da Saúde em dezembro passado, totalizando R$ 35,5 milhões, mas o valor só foi liberado no dia da visita de Padilha. Como indica o sistema de convênios do governo federal, os acordos visam, entre outros pontos, garantir “retaguarda hospitalar pública para a realização da 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP30)”.

    Em nova visita de Padilha, em outubro, o hospital formalizou adesão ao programa Agora Tem Especialistas, plataforma central do governo Lula para as ações de saúde.

    O BP, como é conhecido o hospital, é presidido desde dezembro de 2018 por Alírio Gonçalves. Na época, seus filhos, Alírio Rodrigo Gonçalves e Raphael Gonçalves, trabalhavam com o pai na rede de postos de combustíveis da família, onde também seguem atuando hoje em dia. No meio do caminho, porém, em dezembro de 2019 os filhos fundaram a empresa Horizon Soluções Médicas Ltda. A sede foi registrada em um escritório de contabilidade.

    Antes do primeiro ano de operação, a Horizon começou a fornecer equipamentos para a Beneficente Portuguesa. No total, a empresa recebeu pelo menos R$ 383 mil reais, conforme quatro notas fiscais emitidas este ano obtidas pelo Metrópoles. Mas esse valor pode ser ainda maior, uma vez que parte das notas refere-se a serviços recorrentes mensais e a empresa atende o hospital há pelo menos 60 meses.

    Os fornecimentos da Horizon ao hospital são explicitados no próprio Instagram da empresa, que registra dezenas de imagens de cirurgias e outros procedimentos realizados com equipamentos fornecidos. Todas essas imagens foram captadas no Beneficente Portuguesa, como a empresa registra em suas redes.

    Em 2021, essa relação dos filhos com o hospital presidido pelo pai se estreitou ainda mais: a Horizon abriu sua primeira filial, localizada no mesmo endereço do Hospital São João de Deus, que, conectado por uma passarela ao Hospital D. Luiz I, forma o complexo hospitalar Beneficente Portuguesa – ou seja, uma unidade dentro do complexo presidido pelo pai.

    A empresa fornece, especialmente, equipamentos para a área de ortopedia, como próteses e órteses, e traumatologia. Mas também há envolvimento direto da empresa com fornecimento de equipamentos usados, por exemplo, na especialidade de urologia, conforme notas fiscais obtidas por Metrópoles indicando um gasto de R$ 99.549,60 com a locação de um “gerador de urologia”.

    Traumatologia e urologia são duas das especialidades mencionadas diretamente nas justificativas dos convênios com o Ministério da Saúde: “ampliação do Hospital D. Luiz I em 240 leitos de internação, 50 leitos de UTI e 10 salas de cirurgias, com a necessidade de aquisição de novos equipamentos, acrescendo a oferta das especialidades: Cardiologia, Neurologia, Traumatologia e Urologia, melhorando a qualidade dos serviços, reduzindo a demanda reprimida do município de Belém e região metropolitana”.

    Documento da Receita Federal sobre HorizonDocumento da Receita Federal sobre Horizon

    A atuação da Horizon, contudo, pode ir além do fornecimento direto de equipamentos médicos. Em seu registro na Receita Federal, o objeto social principal da empresa é o “comércio atacadista de próteses e artigos de ortopedia”, mas a empresa também indica atuar como “representante comercial e agente do comércio de instrumentos e materiais odonto-médico-hospitalares”, ou seja, atuando em nome de outras empresas.

    Ministério da Saúde renovou certificado de hospital

    O Beneficente Portuguesa teve seu Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (Cebas) renovado em setembro deste ano, após nove meses de análise do pleito pelo Ministério da Saúde. Essa certificação exige, entre outras condicionantes, atendimento de pelo menos 60% direcionado ao SUS. Em contrapartida, garante à entidade imunidade de contribuições sociais, sobretudo a contribuição previdenciária patronal. Agora, a imunidade do hospital é válida até o fim de 2027.

    Entre os pontos avaliados para a concessão do Cebas está a questão da regularidade das contas da entidade beneficiada. A análise, portanto, não identificou, ou não viu problemas, na relação comercial existente há mais de cinco anos entre o hospital e a Horizon.

    O hospital passou por reformas recentes, concluídas neste ano, que o transformaram em um dos principais da região Norte. Essa expansão conta com o envolvimento de outra empresa ligada à família do presidente do hospital. O projeto arquitetônico do interior de um dos blocos mais modernos dessa expansão, inaugurado neste ano, coube ao escritório de arquitetura da nora de Alírio, Raíssa Ataíde. Além disso, o Instagram da Horizon destaca diferentes momentos em que a empresa foi marcada pelo perfil oficial do Beneficente Portuguesa em posts destacando o projeto de expansão do complexo hospitalar.

    Apesar do apoio focado do Ministério da Saúde ao Beneficente Portuguesa, ele não é o único hospital filantrópico de Belém, com certificação ativa. Um concorrente importante nesse sentido é o Hospital Maradei, vinculado à Associação Pró-Trauma. Sua especialidade é na área de traumatologia e ortopedia. A Horizon, no entanto, não indica ter qualquer relação com esse estabelecimento.

    O Ministério da Saúde não possui convênios com esse hospital. A unidade, no entanto, aderiu também ao programa Agora Tem Especialistas. Em agosto, o Maradei recebeu uma visita do Ministério da Saúde, mas com outro nível de prestígio: em vez do ministro Alexandre Padilha, quem representou a pasta foi uma assessora do secretário de Atenção Especializada, Mozart Sales.

    A capital paraense tem ainda, como unidade filantrópica, o Hospital da Ordem Terceira, que também atende diversas especialidades, mas não contou com ações específicas do Ministério da Saúde.

    Ministério da Saúde se exime de responsabilidade sobre fiscalização

    Em nota, o Ministério da Saúde informou que não é responsável pela fiscalização de relações de fornecedores de entes privados que não estão relacionadas ao atendimento público. “O Departamento Nacional de Auditoria do Sistema Único de Saúde (DenaSUS) analisa a prestação de serviços conforme o interesse público e a sua conformidade com as regras da administração”, explicou a pasta.

    O ministério afirmou, ainda, que a contratualização do Hospital Beneficente Portuguesa para prestação de serviço ao SUS, bem como a organização de toda a rede de saúde assistencial na cidade, é de responsabilidade da Prefeitura de Belém, de acordo com modelo tripartite previsto na Legislação.

    “A escolha dessa unidade para o legado da COP30 foi apresentada pela Prefeitura de Belém”, acrescentou. Procurado, o executivo municipal não se manifestou. O Beneficente Portuguesa também não quis comentar.