Maria disse, “lembra do Augusto que estudou com a gente? Está trabalhando em um supermercado”. Edson sentiu na voz dela um tom pesaroso. Já Carlos soltou: “E a Amanda que tá trabalhando na Uber?” Já sua voz, mais, seu corpo inteiro, exalava um “deus me livre aconteça comigo”. Edson respondeu incomodado que “trampo é trampo, né”. Carlos nada disse, mas seu olhar revirou em desacordo.
Enquanto olhavam o cardápio em um bar perto da Praça da República, pairava sobre a mesa essa ideia, era uma vergonha trabalhar em um supermercado ou na uber para sobreviver. Edson lembrou que o último aperto que Carlos passou na vida foi o cancelamento de uma conexão para voltar ao Brasil. As veias de sua garganta saltavam quando defendia que, com esforço, todo mundo chega lá, seja lá o que lá seja. Carlos comanda as pizzarias da família e vive dizendo que está difícil encontrar bons empregados. “Ninguém mais quer trabalhar nesse país”, é sua frase favorita. O garçom chegou e ele pediu um negroni.
Maria normalmente bateria de frente com Carlos com a gentileza de um caminhão na direção de um Uno, mas desconversou e pediu uma gin tônica. Dava pra deduzir que discutir com ele havia caído em seu ranking de prioridades, que eram o trabalho na agência, seus dates, seu cão Tony e sua gata Gigi, os filmes, séries e peças que assistiu. Tinha enorme repertório sobre as mudanças necessárias para o país – mas não reajustava a diária de sua “colaboradora” doméstica há três anos.
Edson pensava na lei nada silenciosa que todo trabalho braçal deve ser desprezado no Brasil, nessa fronteira que separava profissões. Vestígios da escravidão, diria Maria, que contava a história de um amigo endinheirado que pagou arquiteto, decorador, e materiais para casa em São Francisco Xavier sem olhar o preço, tudo do melhor. Mas na hora que o pintor deu o valor do serviço, disse que estava caro e pechinchou. Carlos, em momento de ostentação proletária, dizia que já tinha até limpado banheiro na vida. Nem sempre citava que fora em um intercâmbio na Austrália em sua juventude.
Edson se reconhecia nos dois, diria dias depois na terapia. Cultivava uma angústia quando pensava no futuro, já que o presente profissional tropeçava. Era professor em uma universidade privada e sócio em uma consultoria de ESG. Como a maioria dos jornalistas, publicitários, advogados, artistas, era um fodido com diploma. Não tinha economias, nem casa própria. Se perdesse tudo, nem a uber poderia abraçar, já que não dirigia.
O que indignava era a desigualdade. Uma CEO e uma faxineira trabalham no mesmo espaço. O que justifica a faxineira ganhar 1000 vezes menos do que uma CEO? Não era a favor de todo mundo ganhar o mesmo, mas precisava ter esse abismo escroto entre elas? Imaginou que jamais haveria democracia enquanto existisse essa disparidade.
Não suportava o discursinho da meritocracia e também queria mudar o país – desde que não precisasse fazer muita coisa, confessava. Quando o papo da mesa aterrissou nas gloriosas origens europeias, suas contradições soaram em seu cérebro. Seu pai era da Bahia e vez em quando esquecia da Bahia. Afirmava-se negro, se interessava por parditude e vez em quando deixava de emponderar sua negritude. Talvez fosse um cansaço contra essa pressão sutil, contínua e antiga que navega na identidade do país. Sentiu no peito uma caverna escura e vazia, onde ecoavam suas dores.
Se precisasse, Edson trabalharia no que fosse, tinha certeza disso. Sempre admirou marceneiros, pedreiros, encontrava neles uma habilidade incomum. Recordou da felicidade infantil que sentiu ao montar um armário há algumas semanas, um sentimento que não brotava há anos na universidade ou na consultoria. Naquele dia acercou-se de um universo tátil e verdadeiro. Gostava mesmo de cerveja. Pediu um drink com aperol.
