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    Viagem noturna e arsenal desmontado: como atuavam mulas de fuzis do CV

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    Quando olharam para o galpão e para as máquinas de uma fábrica em Santa Bárbara d’Oeste, no interior paulista, a operação impressionou policiais federais pela precisão com a qual peças de armas eram produzidas no local. Ao investigarem mais afundo a quadrilha que atuava ali, constataram que a produção ininterrupta, principalmente de fuzis, só era possível por conta dos deslocamentos feitos por entregadores especializados, com viagens curtas, em horários escolhidos, de forma fracionada e em pontos combinados.

    Sem essa malha logística, a linha de montagem não teria escoamento. Foi por isso que a Polícia Federal (PF) mapeou e conseguiu desmantelar a quadrilha, segundo relatórios obtidos pelo Metrópoles.

    10 imagensArmas eram projetadas em 3DArmas eram montadas no interior de SPArmas eram repassadas para facções no Rio e nordeste Peças eram feitas com maqunário de fábrica que deveria produzir peças aeroespaciaisFechar modal.1 de 10

    Projetos eram posteriormente executados em fábrica no interior paulista

    Reprodução/PF2 de 10

    Armas eram projetadas em 3D

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    Armas eram montadas no interior de SP

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    Armas eram repassadas para facções no Rio e nordeste

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    Peças eram feitas com maqunário de fábrica que deveria produzir peças aeroespaciais

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    Armas custavam entre R$ 8 mil e R$ 15 mil

    Reprodução/PF8 de 10

    Arte Alfredo Henrique/Metrópoles9 de 10

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    Reprodução/PF

    O corredor logístico

    A investigação identificou um corredor de atuação claro, iniciado em Santa Bárbara d’Oeste (fábrica), de onde as “mulas” se deslocavam para Piracicaba e Limeira (testes e oficinas parceiras). De lá, seguiam para Sumaré e Americana (depósito e montagem final), para finalmente coordenarem, de Campinas, o despacho dos arsenais ilegais, do interior paulista, até compradores no Rio de Janeiro e, eventualmente, Goiás. Entre os clientes da quadrilha estavam facções criminosas, incluindo o Comando Vermelho (CV).

    As rotas:

    • Santa Bárbara d’Oeste para Piracicaba e Limeira — envio de peças para usinagens complementares e testes de encaixe com peças menores, além de ajustes finos.
    • Santa Bárbara d’Oeste para Americana (depósito) — montagem final e estoque; local usado como “bunker” para concentrar lotes antes do envio.
    • Americana para o Rio de Janeiro — remessas interestaduais, geralmente com peças desmontadas e embaladas para dissimular conteúdo.
    • Santa Bárbara d’Oeste para Sumaré e Campinas — entregas de insumos, coordenação logística e pontos de apoio.
    • Sumaré para Goiás (quando havia demanda) — envios ocasionais, possivelmente para clientes fora da rota principal.

    Cada trecho tinha um propósito logístico bem definido: insumos, usinagem final, montagem, estocagem e exportação ao comprador.

    Os deslocamentos entre as cidades do interior paulista até as armas serem encaminhadas para outros estados aparecem de forma recorrente em conversas entre os criminosos — com instruções, confirmações de entrega e notas de pagamento — e, também, nos deslocamentos registrados por vigilância e checagem de abastecimentos de veículos.

    Horários e método

    Os deslocamentos mais sensíveis ocorriam entre 23h e 5h. A razão, segundo a PF, era pragmática: durante esse horário, o tráfego é menor, existe menos chance de abordagem policial e, consequentemente, maior possibilidade de eficácia com entregas discretas.

    “A fábrica funcionava no galpão, mas a operação mesmo acontecia nos carros deles”, afirmou em relatório um dos policiais federais que fez a vigilância do bando em São Paulo.

    Fragmentação

    Uma peça-chave do método logístico da quadrilha era o fracionamento. Em mensagens que a perícia juntou, um integrante orienta: “Leva só as quatro hoje. O resto mando amanhã com o outro cara”.

    O objetivo era, de acordo com a investigação, evitar que um único veículo carregasse componentes suficientes para caracterizar, diante de uma fiscalização, uma arma completa. Ao dividir lotes em várias viagens e usar diferentes condutores, a quadrilha “fragmentava” o risco.

    “Mulas técnicas”

    As pessoas que realizavam essas rotas não eram motoristas aleatórios. Eram o que a PF chamou de mulas técnicas. De acordo com a investigação, eles sabiam distinguir peças, acondicionar corretamente, fracionar remessas e entregar em pontos seguros.

    Além disso, os entregadores reconheciam componentes (ferrolho, cano, trava, kit de pistola); sabiam como ocultar em caixas de ferramentas ou estojos técnicos; conheciam pontos de entrega discretos e eram capazes de seguir instruções técnicas recebidas por mensagem.

    A PF descreveu o papel deles como essencial. Sem esse conhecimento prático, a fragmentação e a circulação das partes das armas de guerra não seriam possíveis.

    Logística, elo frágil e valioso

    A logística da quadrilha foi o ponto-chave para o sucesso da operação criminosa, permitindo a produção em série, o envio fracionado e as entregas interestaduais dos arsenais ilegais.

    Ao mesmo tempo, foi também o fio que guiou os investigadores: cruzamentos de deslocamentos, mensagens e pagamentos revelaram depósitos suspeitos, identificaram condutores e permitiram montar o quebra-cabeça que levou às prisões e apreensões.