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A Verdade Contratual: onde Juca Kfouri erra e a Lei Geral do Esporte não perdoa

A Verdade Contratual: onde Juca Kfouri erra e a Lei Geral do Esporte não perdoa

Em 08 de dezembro, cinco dirigentes do Sindicato do Futebol publicaram um artigo, defendendo a criação de uma liga soberana, autônoma e independente no futebol brasileiro. O texto foi baseado em parecer do acadêmico Wladimyr Camargos, Professor da Universidade Federal de Goiás, especializado em Direito Desportivo. Basicamente, os autores criticaram a estrutura jurídica adotada pelo “Condomínio Forte União – LFU”, por transferir o controle sobre o principal produto do futebol brasileiro – o Campeonato Brasileiro – dos clubes a um fundo financeiro, por um período de 50 anos.

Um dia depois, o jornalista Juca Kfouri defendeu o modelo da LFU, acusando dirigentes de não terem efetivamente redigido o artigo e de revelarem uma falsa aceitação do modelo das ligas de futebol, quando, em verdade, estariam mais preocupados com a preservação do sistema atual.

Deixemos de lado as questões pessoais e as lamentáveis insinuações de que, por representarem o Norte e o Nordeste, tais dirigentes careceriam de legitimidade para o debate, para nos ater aos fatos e ao único argumento apresentado pelo colunista: de que clube algum estaria transferindo direitos aos investidores.

Parece-me que o colunista não se debruçou sobre o instrumento contratual com a devida atenção, bem como aventurou-se a opinar sobre uma lei que jamais leu. Para assegurar a todos, a veracidade do que afirmamos a seguir, deixamos aqui o link para a versão integral do documento.

Uma leitura rápida do documento evidencia várias cláusulas que compõem um preocupante cenário de completa alienação do futebol brasileiro, empoderando um fundo financeiro em detrimento dos clubes.

Veja como, logo no início do contrato, as Cláusulas 2.6 e 2.8 já contrariam frontalmente a afirmação do citado jornalista. A Cláusula 2.6 estabelece a divisão do Condomínio em partes ideais. Contudo, a Cláusula 2.8 determina expressamente o “Incremento da Participação do Investidor”, qual seja: após o pagamento, o Investidor assume a titularidade de 20% (vinte por cento) de todos os direitos, restando a todos os clubes a divisão dos 80% restantes.

Considerando a composição atual da LFU (cerca de 34 clubes), a disparidade é gritante: enquanto o Investidor manda em 20% do negócio, cada clube detém uma fração de aproximadamente 2,35%.

O cenário ainda pode piorar, haja vista que o ingresso de novos clubes na LFU terá por consequência a diluição do percentual a eles destinados, ao passo que o percentual do investidor é resguardado nos mesmos 20%, por conta das Cláusulas 2.9.1 e 2.9.2, que assim dispõe:

Num cenário projetado de adesão de 40 clubes (Séries A e B), a conta é impiedosa:

• Investidor: 20% de poder político e econômico.
• Cada Clube: 2% de poder político e econômico.

Estamos falando de um modelo onde um fundo de investimento terá, sozinho, 10 vezes mais peso decisório do que qualquer gigante do futebol brasileiro que venha a aderir ao bloco. É isso mesmo! Enquanto Flamengo, Corinthians, São Paulo e Palmeiras e todos os demais clubes do futebol brasileiro teriam 2% do Condomínio (ou menos, já que Clubes da Série C também fazem parte), o investidor financeiro teria assegurado seus 20%.

Essa distorção se revela ainda mais grave diante da Cláusula 4.10.2 do contrato, que estabelece uma lista de 23 matérias que só poderão ser aprovadas com apoio de ao menos 90% do Condomínio:

Portanto, com a cota do investidor fixada em 20%, ele possui um poder de veto perpétuo sobre definições vitais para o futebol brasileiro, como a aprovação de contratos, do plano de negócios, do orçamento anual, de políticas de divisão e atribuição do resultado, do ingresso de novos clubes, de qualquer alteração da Convenção e quaisquer negócios com entidade de administração do desporto, no Brasil ou no exterior. Ou seja, controlando 20% do Condomínio LFU, o Investidor capturou para si todas as decisões centrais relativas ao Campeonato Brasileiro. Nada muda, nada se aprova e nada se investe sem o consentimento do investidor.

Tal circunstância gera o seguinte cenário hipotético em que a LFU reúna a totalidade da elite do futebol nacional. Se Flamengo, Corinthians, São Paulo e Palmeiras — representantes de mais de 50% dos torcedores do país — discordassem de uma decisão, ela ainda assim poderia ser aprovada, por vontade exclusiva do Investidor, de forma isolada, possuindo este, assim, a chave do cofre e da caneta. Criou-se um sistema onde a vontade de milhões de torcedores, representados por seus clubes, vale menos do que a vontade de um único fundo.

Além das distorções apresentadas o contrato vai além na transferência de direitos. A Cláusula 6.1 determina que a administração do condomínio será feita por uma empresa “indicada pelo Investidor”. Da mesma forma, a Cláusula 7.2 determina que a Equipe Comercial, responsável por vender os direitos e fazer o dinheiro entrar, também será “indicada pelo Investidor”. Aos clubes, resta apenas o papel figurativo de aprovar o nome já escolhido pelo fundo financeiro, ou seja, quem define, administra e vende o principal produto do futebol brasileiro é o Investidor, não os clubes.

Lembremos que decisões vitais exigem quórum de 90%. Entre essas decisões, está justamente a alteração ou término de Contrato com a Administradora ou com a Equipe Comercial. Ou seja, o Investidor indica a Administradora e, uma vez aprovada, ela não pode ser alterada sem a benção do Investidor, ainda que todos os clubes assim o desejem.

Sustentar que tal modelo não resulta em “transferir direitos” ou “perder soberania”, como faz o jornalista, me parece subestimar a inteligência do torcedor e a responsabilidade dos dirigentes.

Embora o instrumento contratual reúna mais distorções, não me cabe aqui esmiuçá-lo, sendo suficiente a análise acima para demonstrar que o modelo em questão gera uma disformidade grave, ao atribuir ao Investidor um papel deliberativo que efetivamente caberia aos clubes. Em nenhum momento advoga-se a resistência ao ideal de uma liga de futebol, mas de uma crítica ao modelo proposto.

A essa altura está claro: a adesão a este modelo de Liga não foi guiada por uma estratégia de longo prazo de valorização do futebol brasileiro, mas pela crise financeira. Necessitados de recursos de curto prazo para fechar as contas, os clubes aceitaram um compromisso draconiano. Não se limitaram a vender receitas que pertenceriam às próximas gerações de torcedores pelos próximos 50 anos; entregaram, também, o poder decisório sobre todos os temas relevantes à competição. Em troca de um alívio de caixa momentâneo, clubes centenários foram convertidos em passageiros de um veículo conduzido por um Investidor financeiro, num modelo jurídico, inexistente em qualquer outro país do mundo, e que contraria as previsões da Lei Geral do Esporte e os interesses dos torcedores.

Ao transformar os protagonistas do espetáculo em condôminos minoritários, o modelo da LFU não cria uma Liga, mas uma camisa de força, que transforma os clubes em coadjuvantes de sua história por mais de meio século.

Portanto, ao contrário do que quer fazer crer o colunista mencionado, não se trata aqui de sustentar uma oligarquia de cartolas no futebol, tampouco de resistência a novos paradigmas. O núcleo do debate reside na adoção do melhor formato para o desenvolvimento de uma liga autônoma e independente, em que os clubes sejam protagonistas de sua própria história, o que não parece ocorrer no modelo contratual apresentado.

Ricarlos Almagro é doutor em Direito pela PUC-MG

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