A relação das pessoas com os bancos ainda se resumia em pegar um papelzinho com uma senha na porta das agências e esperar por horas até ser atendido quando o australiano Brett King escreveu sobre como as mudanças tecnológicas transformariam o setor financeiro em todo o planeta. Em 2010, ele escreveu Bank 2.0., livro que apresentou ao mundo as tecnologias que abriram caminho para as fintechs, os pagamentos digitais e os apps bancários que conhecemos hoje.
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Nos últimos anos, King voltou suas atenções para o impacto da inteligência artificial (IA). Em 2021, lançou The Rise of Technosocialism: How Inequality, AI and Climate will Usher in a New World (A ascensão do tecnossocialismo: como desigualdade, IA e clima vão moldar um novo mundo, em tradução livre já que o livro ainda não tem uma versão em português).
Em Brasília para uma palestra durante o Encontro Anual de Gestores da Caixa, King conversou com o Metrópoles sobre o posicionamento do Brasil no sistema econômico mundial, sobre os avanços IA e seus impactos tanto no mundo financeiro quanto no mundo real, com o possível aumento da desigualdade social.
King afirmou, entre outras coisas, que o Pix coloca o Brasil 10 anos à frente dos EUA em tecnologia de pagamentos e revelou que grandes empresas internacionais como Visa e Mastercard planejam um “futuro sem plástico” com uma operação semelhante ao Pix.
O futurólogo também comentou sobre as preocupações com a chamada “bolha da IA”, o receio de que a euforia e os investimentos massivos em Inteligência Artificial estejam inflando os preços de ações de tecnologia a níveis insustentáveis. Para ele, é, sim, uma bolha. “Mas, ao mesmo tempo, a IA é a tecnologia de maior impacto que a humanidade verá nos últimos 1000 anos“, disse.
Confira a entrevista completa:
Metrópoles: Não é sua primeira vez no Brasil, certo?
Brett King: Não, já estive umas 12 ou 14 vezes. Minha primeira visita ao Brasil foi em 2006. Já estive em São Paulo, Brasília, Rio, Avaré e Ubatuba.
Metrópoles: E como o senhor enxerga o sistema financeiro brasileiro?
Brett King: Conheço o Pix. Eu entrevistei e conheço David Velas do Nubank. Visitei o Bradesco, o Itaú, o Banco do Brasil e, obviamente, a Caixa. Então, conheço muito bem os bancos.
Metrópoles: Qual a sua opinião sobre o Pix? Recentemente, ele foi alvo de críticas do governo norte-americano.
Brett King: O Pix é o sistema de pagamento que mais cresce no mundo. E muitos brasileiros provavelmente não percebem, mas por causa do Pix o Brasil já está 10 anos à frente dos Estados Unidos em tecnologia de pagamentos. A limitação que o Brasil tem com o Pix hoje não é o Pix em si, mas, sim, a identidade. Precisamos de sistemas de identidade digital para IA, para o PIX, para a próxima geração de sistemas. Isso é importante. Porque um documento de identidade em papel não será suficiente.
Metrópoles: Há quem diga que o Pix ameaça grandes empresas de cartão de crédito. O senhor concorda?
Brett King: Eu sou um consultor da Mastercard. Então, estamos falando muito sobre isso. Na verdade, a Mastercard e a Visa estão se preparando para um futuro sem plástico, apenas com a tokenização no celular. Mastercard e Visa querem se tornar como o Pix, uma camada de transmissão tokenizada para dados, não apenas para dinheiro. No futuro, talvez o Pix seja mais do que transações bancárias.
Metrópoles: E quais seriam esses dados?
Brett King: Talvez sejam dados de saúde. Se você for ao médico e quiser enviar seus registros de saúde, por exemplo, talvez você envie da sua carteira no seu celular via Pix para o médico ou para o hospital. O que chamamos de open banking hoje pode se tornar um modelo para open health e outros tipos de dados no futuro.
Metrópoles: O Pix pode se tornar internacional?
Brett King: Com certeza. Acho que, na verdade, houve algumas conversas sobre a criação de um sistema Pix internacional com o México. E temos alguns bancos na Flórida, bancos de Miami, que já têm acesso ao Pix. Acho, porém, que a grande mudança será no sistema bancário autônomo e nos pagamentos por contratos inteligentes. Então, em meados da década de 2030, eu esperaria que muito mais transações fossem feitas com CBDCs [moedas digitais de Bancos Centrais] e stablecoins. E precisamos de novos caminhos para isso. A questão para os Brics, por exemplo. Os Brics usariam uma CBDC chinesa modificada? Ou usariam Pix com stablecoin? A resposta provavelmente é uma combinação de ambos.
Metrópoles: Ao mesmo tempo em que criou o Pix, o Brasil é o segundo país com maior concentração bancária do mundo, com poucos bancos atendendo a maior parte da população. Como o senhor enxerga o sistema bancário brasileiro?
Brett King: Está evoluindo, está mudando. A empresa mais valiosa do Brasil hoje é um banco digital. E é também um dos maiores, um dos melhores bancos digitais do mundo, um dos mais eficientes, e um dos que crescem mais rapidamente. A relação custo/receita do NuBank é de 26%. A média global para bancos é de 58%. Portanto, é um bom modelo. E isso também significa que a regulamentação deve mudar. Então, quando falarmos sobre licenças bancárias no futuro, as licenças bancárias serão uma licença bancária digital. Porque essa será a principal competência. E se começarmos a pensar em conformidade e regulamentação, o Banco Central do Brasil também precisa se tornar a tecnologia central para o país. Então, essa é a maior mudança. Costumávamos pensar no Banco Central como um regulador. Porque ele estabelece as leis e as regras para a operação segura do sistema bancário. Mas, no futuro, eles implementarão a infraestrutura tecnológica para um sistema bancário seguro.
Metrópoles: Nas últimas semanas cresceu no mundo a preocupação com a chamada “bolha da IA”. Há motivos para ficar alerta?
Brett King: Se você olhar para os Estados Unidos este ano, eles investiram 800 bilhões de dólares em IA. E, sem esse investimento, os EUA estariam tecnicamente em recessão. Portanto, os EUA são muito dependentes do sucesso da IA. E sim, é uma bolha. Mas, ao mesmo tempo, a IA é a tecnologia de maior impacto que a humanidade verá nos últimos 1000 anos. Então, é algo muito importante. Isso vai mudar tudo. Vai mudar a saúde. Vai mudar o governo. Vai mudar o emprego e a forma como trabalhamos. Vai mudar tudo isso muito rapidamente. Minha preocupação com a IA é que nossa tecnologia está evoluindo de forma exponencial. Mas a adaptação das políticas e dos sistemas humanos não. É essa lacuna que é o maior problema. Os sistemas humanos não respondem rapidamente. E o mercado está pressionando, pressionando pela IA porque ela vai gerar muito dinheiro para o mercado. Mas, ao mesmo tempo, vai criar muita disrupção e caos. Portanto, precisamos de políticas e governança muito inovadoras.Um dos problemas que temos nos EUA, no Brasil, em muitos países do mundo, é que nossos políticos são mais velhos. E eles não são necessariamente competentes em tecnologia. Então, talvez precisemos mudar nossa política também para nos adaptarmos. Política e políticas públicas.
Metrópoles: E os impactos no mundo real com o avanço da IA no mundo do trabalho?
Brett King: O principal problema da IA é que a IA foi projetada para tirar os humanos da força de trabalho e substituí-los por algoritmos e robôs. Esse é o seu propósito principal. Então, no passado, os capitalistas diziam: “Tudo bem”. Você tem a internet, você tem a revolução industrial. Cada vez que temos uma nova tecnologia, criamos novos empregos para os humanos Mas nunca tivemos uma tecnologia capaz de impactar o trabalho braçal e o trabalho intelectual em todos os setores ao mesmo tempo. Esse é o problema. A velocidade da disrupção é o problema. É por isso que você ouve muitos empreendedores, os bilionários, falando sobre Renda Básica Universal. Eles dizem: vamos criar toda essa riqueza com IA e vamos dar essa riqueza como renda básica para as pessoas que perderem seus empregos por causa da tecnologia.Essa é uma boa teoria, mas ainda não sabemos como fazer isso E mesmo que façamos isso, criaremos um sistema feudal. Os ricos donos de IA, que possuem a tecnologia, e todos os outros que recebem renda básica, recebem apenas seu pagamento mensal do governo. E este também não é um sistema muito bom. Então, como futurólogo, este é o problema que vejo.
Metrópoles: O senhor falou sobre a importância da regulamentação. Como ela deve ocorrer, na sua percepção?
Brett King: Em última análise, para criar a forma mais eficiente de governança, à medida que implementamos a automação no sistema, temos que eliminar os humanos do processo de tomada de decisão. E podemos implementar sistemas muito simples de freios e contrapesos nessa automação para garantir que não haja corrupção. Portanto, tenho esperança de que mais automação signifique menos corrupção. Dito isso, o principal problema são as empresas de tecnologia que fazem com que essa tecnologia se torne mais poderosa do que o governo. E este é um novo problema. Como regulamentamos essas empresas de tecnologia? Há um comentarista muito bom nos Estados Unidos sobre política global e ordem global. O nome dele é Ian Bremmer. E ele fala sobre como passamos do G20 para o G7 e agora para o G0. E ele diz que estamos em uma guerra fria tecnológica entre o sistema tecnológico dos EUA e o sistema tecnológico chinês. Agora, se você quer questionar o governo, você tem que questionar as empresas de tecnologia que administram as mídias sociais e os algoritmos. Este é o problema central para o qual estamos evoluindo. Então, estamos trocando um problema, a corrupção, a ineficiência, por empresas de tecnologia, que são uma caixa preta que não entendemos. É por isso que precisamos de alinhamento com a IA. Então, regras de IA para ética e operação para tornar a tecnologia segura e benéfica para todos. E você pode ver ao redor do mundo agora uma explosão da política de direita. Populismo, Bolsonaro, Trump, Le Pen, etc. Porque os políticos entendem que, uma vez que a tecnologia venha da IA, eles não terão mais o poder. Então, esta é a última chance deles de assumir o controle do sistema antes que criemos esses sistemas para beneficiar a todos. Porque a IA é, por natureza, socialista, projetada para melhorar a qualidade de vida de todos. E esse é o problema com o sistema político atual. Faz sentido?
