Investigação da Polícia Federal (PF), obtida pela reportagem do Metrópoles, revela que a célula do Comando Vermelho (CV) responsável por uma fábrica clandestina de fuzis, no interior de São Paulo, utilizou plataformas de comércio eletrônico para viabilizar a logística de aquisição, recebimento e circulação de peças de armas, driblando mecanismos formais de fiscalização. O inquérito policial mostra o uso recorrente de marketplaces como parte da engrenagem cotidiana da operação ilegal.
Segundo denúncia do Ministério Público Federal (MPF), integrantes do grupo compravam componentes compatíveis com fuzis da plataforma AR, como empunhaduras e alavancas de manejo — estas usadas exclusivamente para destravar munição — por meio do Mercado Livre. As aquisições eram feitas em nome de Walcenir Gomes Ribeiro, apontado como um dos operadores do esquema, e tinham como destino endereços ligados à quadrilha no Rio de Janeiro e em São Paulo.
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Alavanca de manejo está entre itens comprados por criminosos em marketplace
Reprodução/PF
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Item usado por quadrilha é facilmente encontrado em busca na internet
Reprodução/Google
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Alavanca de manejo é puxada por militar em metralhadora Browning M2
Reprodução/Domínio Público
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Fábrica produzia armamento posteriormente vendido a facções e milícias
Reprodução/PF
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Alavanda de manejo (entre empunhadura e pegador superior) é usada para destravar munições
Imagem de domínio público
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Com parte das peças compradas na internet, quadrilha montava fuzis em fábrica clandestina
Reprodução/PF
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Arte/Metrópoles
O processo aponta que parte dessas encomendas foi enviada ao endereço utilizado por Gabriel Carvalho Belchior, sócio formal da empresa de fachada Kondor Fly Parts, no condomínio Verano Stay, na Barra Olímpica, zona oeste do Rio. Gabriel, atualmente foragido, é descrito como peça-chave da articulação logística e internacional do grupo, com vínculos também nos Estados Unidos, onde ele estaria residindo, de acordo com a investigação.
Ao Metrópoles, o Mercado Livre afirmou monitorar anúncios suspeitos na plataforma e colaborar com as autoridades de segurança quando necessário (leia mais abaixo).
Cadastros de delivery
Além das compras em plataformas de e-commerce, a investigação identificou o uso de um app de entrega de alimentos como indício da ocupação e do funcionamento regular da fábrica clandestina. Registros analisados pela PF mostram que o endereço do galpão, em Santa Bárbara d’Oeste, onde operava a empresa Kondor Fly Parts, foi utilizado para cadastro na plataforma digital.
Para os investigadores, o uso do app não teve finalidade direta no transporte de armas, mas serviu para confirmar a presença frequente de pessoas, a rotina operacional e a plena atividade do imóvel. Os dados reforçam que o galpão não estava desativado ou em fase de testes, como alegado por alguns dos denunciados, mas funcionava diariamente com circulação constante de operadores.
Segundo o MPF, esse tipo de registro ajuda a reconstruir a dinâmica da organização, mostrando como serviços comuns do cotidiano eram incorporados à logística de uma atividade criminosa de alta complexidade.
Compras lícitas em contexto ilícito
A denúncia destaca que os itens adquiridos no Mercado Livre, isoladamente, não são armas de fogo completas, mas componentes essenciais para a montagem e funcionamento de fuzis de uso restrito. Inseridos no contexto da fábrica clandestina, no entanto, esses produtos passam a integrar uma cadeia produtiva ilegal.
O Metrópoles fez uma busca dos itens na plataforma, na tarde dessa terça-feira (9/12), encontrando-os com facilidade. Os preços de alavancas de manejo, por exemplo, variavam entre R$ 350 e quase R$ 3 mil.
Relatórios da PF citam capturas de tela, comprovantes de compra, datas de entrega e endereços coincidentes com os imóveis usados pela quadrilha. Esses elementos foram cruzados com contratos de locação, registros em nuvem e mensagens trocadas entre os integrantes do grupo, compondo um quadro que, segundo o MPF, afasta a hipótese de aquisições fortuitas ou para fins lícitos.
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Logística discreta e baixo risco
Para os investigadores, o uso de plataformas amplamente difundidas reduzia a exposição da quadrilha. Encomendas feitas por marketplaces se misturavam a milhões de entregas regulares, enquanto serviços de delivery ajudavam a sustentar a rotina operacional dos galpões sem levantar suspeitas.
A estratégia permitiu ao grupo manter o fluxo de peças e o funcionamento da fábrica mesmo após prisões de integrantes-chave, incluindo o líder Silas Diniz Carvalho, o Gordão, que, como já revelado pelo Metrópoles, seguia coordenando a operação de dentro do sistema prisional.
Provas digitais reforçam acusação
O MPF afirma que os registros do Mercado Livre, somados a dados de nuvens digitais, comprovantes financeiros e mensagens, foram fundamentais para demonstrar a continuidade, a organização e a profissionalização da produção clandestina de armas.
Para a acusação, o uso dessas plataformas evidencia como serviços cotidianos da economia digital podem ser instrumentalizados por organizações criminosas para sustentar atividades ilícitas de grande escala.
O que diz o Mercado Livre
O Mercado Livre afirmou ao Metrópoles, em nota, que permite a oferta de produtos de venda livre, “em conformidade com a legislação brasileira”.
A plataforma acrescentou repudiar o desvio de finalidade na utilização dos produtos, “sobretudo quando associada a usos ilícitos ou que ofereçam risco à saúde”.
A empresa acrescentou monitorar continuamente os itens anunciados no app e também colaborar com a autoridades de segurança, removendo anúncios que incentivem “usos irregulares”.
“O uso indevido da plataforma pode resultar em banimento”, afirmou, acrescentando que a empresa mantém uma listagem de produtos proibidos disponível aos usuários, que podem denunciar “conteúdos suspeitos” em um botão presente em “todos os anúncios”.
