Lula deveria refletir sobre os presidentes que entraram em rota de colisão com o Legislativo. A história é clara: governos em minoria que apostaram no confronto se deram mal. Jango em 1964 e os impeachments de Collor e Dilma ilustram como a governabilidade se desmancha quando o Executivo perde capacidade de negociação. Em democracias, correlação de forças se altera por entendimento. Quem esquece isso paga caro.
Lula deveria refletir sobre presidentes que entraram em rota de colisão com o Legislativo. A história é clara: governos em minoria que apostaram no confronto se deram mal. Jango em 1964 e os impeachments de Collor e Dilma ilustram como a governabilidade se desmancha quando o Executivo perde capacidade de negociação. Em democracias, correlação de forças se altera por entendimento. Quem esquece isso paga caro.
Não estamos diante de ruptura institucional nem de risco de impeachment. Mas a crise política é real e avança rápido. A nota dura de Davi Alcolumbre, descrita por analistas como malcriada e inédita, reagindo à insinuação de que estaria “vendendo dificuldades” na indicação de Jorge Messias ao STF, mostrou o patamar que a tensão alcançou. Foi mais do que um recado: expôs a disputa de poder e, ao mesmo tempo, rebaixou o próprio Senado ao transformar um processo constitucional em palco de lamúrias.
Até pouco tempo, o problema central do governo era a relação com a Câmara, enquanto Alcolumbre atuava como amortecedor no Senado. Não por afinidade ideológica, mas por cálculo. Isso começou a mudar quando Lula escolheu Messias para o Supremo, contrariando o presidente do Senado, que defendia Rodrigo Pacheco. Paralelamente, a Câmara aprovou a Lei Antifacção com apoio de governadores e parlamentares da direita — um recado político de que a maioria estava se realinhando.
A nova aliança entre Hugo Motta e Alcolumbre consolidou o movimento. Dois episódios tornaram isso explícito. Primeiro, a ausência de ambos no ato em que Lula sancionou a isenção do imposto de renda, esvaziando o evento e determinando o fato político do dia. Depois, na sessão que derrubou o veto ao projeto de flexibilização do licenciamento ambiental, quando apareceram lado a lado na mesa diretora, de mãos dadas. Um gesto incomum e politicamente eloquente.
As consequências vieram de imediato. Alcolumbre deu curso à aposentadoria especial para agentes comunitários de saúde, com impacto fiscal expressivo. O Congresso derrubou o veto ao PL do licenciamento. E paira o risco de uma derrota histórica na sabatina de Messias: se rejeitado, seria a primeira recusa desde Floriano Peixoto, há 131 anos.
O diagnóstico estrutural ajuda, mas não basta. O presidencialismo de coalizão perdeu eficácia em ambiente de hiperfragmentação partidária. Evoluímos para um “semiparlamentarismo sem responsabilidades”: o Congresso amplia seu poder sem assumir os ônus de governar. Nesse arranjo, o Executivo precisa operar com muito mais consistência política do que tem demonstrado.
Há também erros do governo. O Planalto acumulou falhas de articulação, de atrasos na comunicação oficial sobre a indicação ao STF ao uso sistemático das redes sociais para pressionar o Congresso. Lula apostou que governabilidade se reconstruiria com acordos táticos e distribuição de cargos. Em vez de uma frente democrática mais ampla, montou um governo centrado no PT e em legendas ideologicamente próximas, deixando ao Centrão apenas espaços secundários. Isso produziu um ministério pouco representativo da base real necessária no Parlamento e deixou o Executivo sem lastro para enfrentar votações complexas.
Além disso, Lula antecipou a disputa eleitoral. Como escreveu Dora Kramer, “o Parlamento é o dono do jogo; cabe ao presidente calibrá-lo para, ao menos, conseguir um empate”. Ao entrar cedo demais no modo campanha, estimulou o Congresso a antecipar suas próprias movimentações sucessórias. O bloco de 276 deputados articulado por Hugo Motta é a prova disso: suficientemente grande para não depender nem do Planalto nem do bolsonarismo.
O governo ainda pode reconstruir pontes, mas terá de reconhecer o novo eixo de poder e abandonar a lógica de coalizão do passado. Será preciso articulação constante, negociação direta e comando político claro. Sem isso, continuará vulnerável a derrotas sucessivas.
A governabilidade está por um fio porque o Executivo perdeu a iniciativa num sistema que já não funciona pela velha mecânica. Sair desse quadro exige algo simples e difícil ao mesmo tempo: recuperar a política, no sentido mais básico da palavra. Sem isso, a relação com o Congresso seguirá marcada por desconfiança e improviso – e o país, por incertezas crescentes.
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Hubert Alquéres é presidente da Academia Paulista de Educação
