Saiu da reunião de vídeo e olhou a mensagem de Sérgio. “Oi João, tudo bem? Estou com um problema no meu computador, vc pode me ajudar?” João digitou, “Desculpa a demora, estava em uma reunião resolvendo uns BOs no escritório do México, diz aí o que vc precisa”. Riu-se. Era gerente Latam de TI e ainda resolvia os problemas do computador de seu amigo.. Há quanto tempo trabalharam juntos? Mais de vinte anos?
Nessa época, João era um faz-tudo em uma agência de comunicação. Sérgio era publicitário. João começou como motoboy, sina de capacete e documentos pra lá e pra cá da cidade. Um dia, uns técnicos foram instalar a rede de internet e convocaram João. Os caras gostaram dele e chamaram para uns bicos à noite ou nos finais de semana. No tempo que sobrava, João colou no seu primo, que tinha uma assistência técnica de computadores no bairro. Em seis meses, só andava de moto para ir trabalhar e voltar pra casa.
Gostava do trampo porque era um aprendizado contínuo entre as repetições da rotina. Mas o que gostava mesmo era a mudança na relação com as pessoas. De motoboy invisível ele se transformou no João do TI. Saltou de desprezado para indispensável. O laptop não ligava, a internet falhava,era João quem apaziguava o pequeno pânico do explorado.
Era uma maioria de gente de classe média alta, todos brancos, todos falando inglês e com passaportes carimbados, que dependiam de João. Conhecimento é poder, dizem, cada um à sua maneira, os filósofos franceses e os posts dos coaches. Os advogados que recebem por uma assinatura e um pouco de juridiquês, os economistas que engabelam a sociedade com neoliberalismos, e João, que fazia dos hardwares um enigma.
Mas não foi fácil no início. Quantas vezes, sem ter a menor ideia do que fazer, inventava uma sobrecarga no disco rígido, adotava um drive desatualizado ou tranquilizava com um “vou reconfigurar e já te devolvo”. Não tinha ideia do defeito, mas declamava suas frases com o olhar de quem acolhe; no tom de voz, um equilíbrio que sutilmente vacilava, sugerindo um desafio que só heróico TI poderia resolver.
Tudo isso era regido pela pessoa que pedia. João percebia quem se esforçava para ser educado, quem o via como igual (Sérgio era assim), quem o achava um incompetente serviçal. As relações de trabalho e a pressão dos chefes deixam as expressões dos rostos cruas, a entonação transparente e o caráter exposto.
Era só ele para atender a quarenta pessoas – mais os problemas da empresa. Socorria, e essa era a palavra, socorria com a isenção de médico de emergência, mas claro, os poucos com consciência de classe tinham preferência. Exercitava seu micropoder sem arrogância. João cultivava a dependência alheia com ponderação, ora fingindo submissão, ora apunhalando com ironias, ora supervalorizando reparos como se invadisse a Matrix. Fazia o que podia e pouco importam as críticas que explodiam às suas costas. Nas festas de fim de ano ou nos bares a que era convidado, sentia-se isolado, mergulhado numa bolha social de interesses impenetráveis.
Tinha certeza que sua carreira fora transformada por esse compromisso em gerir egos, por sua inabalável curiosidade e pela sorte da empresa ser comprada por uma multinacional. Demorou,mas dominou termos técnicos em espanhol e inglês e sustentava diálogos profissionais sem medo. Aí a vida mudou foi em casa.
Ganhando melhor, primeiro comprou um carro, depois arrumou a casa. Em pouco tempo, o bairro parecia pequeno e a distância até Pinheiros grande. Quis levar a mulher e os dois filhos para morar no centro. Foi sua esposa que domou a noção. Seus argumentos: nossas famílias vivem aqui, nossa rede de apoio está aqui, quero meus filhos perto dos primos e dos avós. Não vá pensando que você está rico. Tudo é mais caro no centro, a gente vai ter que pagar aluguel, vai viver que nem os classe média, sorrindo com o cartão no pescoço. Aqui a gente é o que é, lá a gente vai fingir o que os outros são. João escutou. Mudou as crianças para um colégio melhor, contratou uma van para transportá-las e ficou no bairro.
O telefone tocou. Era Sérgio, desesperado para consertar seu sentido de vida.
