Um ataque brutal que deixou pelo menos 15 mortos na Austrália não é um episódio isolado. É mais um alerta tardio, repetido e ignorado de que o antissemitismo não é um resquício do passado, mas uma ameaça presente, crescente e global. Civis inocentes foram assassinados unicamente por serem judeus. Não há contexto político, indignação legítima ou crítica a governos que possam justificar crimes de ódio baseados em religião ou identidade.
Os números são chocantes e falam por si. Nos Estados Unidos, os incidentes antissemitas atingiram níveis recordes em 2024, e, segundo a Anti-Defamation League (ADL), a ousadia e a intensidade desses ataques continuaram ao longo de 2025. Em escala global, o Antisemitism Research Center (ARC) registrou um aumento de 21,2% nos incidentes em julho de 2025 em comparação com julho de 2024. Entre 1º de janeiro e 31 de julho de 2025, foram contabilizados 3.883 incidentes — um crescimento de 9,4% em relação ao mesmo período do ano anterior.
Pesquisas conjuntas da ADL e das Federações Judaicas mostram que 55% dos judeus americanos sofreram algum tipo de antissemitismo no último ano e 18% enfrentaram ameaças físicas ou ataques diretos. Esses dados não apenas surpreendem — assustam. Afinal, revelam algo ainda mais profundo: a normalização do ódio.
A história da comunidade judaica é marcada por perseguições sistemáticas. Dos pogroms no Leste Europeu, passando por séculos de expulsões, guetos e massacres, até o Holocausto, o antissemitismo sempre se alimentou da desumanização. Cada vez que a sociedade relativizou o ódio, ele se transformou em violência. Nada disso é novidade. O que espanta é que, mesmo depois de tudo, parecemos condenados a repetir os mesmos erros.
Pessoalmente, tenho ouvido cada vez mais judeus dizerem que têm medo de usar a Estrela de David no pescoço. Medo de se identificarem como judeus. Medo das consequências. Esse medo não é abstrato e, sim, vivido no cotidiano.
Na Europa, o cenário é igualmente alarmante. Segundo uma pesquisa de 2024 da Agência da União Europeia para os Direitos Fundamentais, 96% dos judeus entrevistados já haviam sofrido antissemitismo no ano anterior aos ataques de 7 de outubro de 2023. Desde então, a imprensa aponta um aumento tanto no número quanto na gravidade dos ataques em diversos países, muitas vezes associados à deterioração da situação em Gaza. Na Alemanha, os incidentes antissemitas cresceram 75% entre 2021 e 2023. Na França, 185%. No Reino Unido, 82%.
Como resumiu Marina Rosenberg, vice-presidente sênior de assuntos internacionais da ADL, pessoas estão sendo assediadas simplesmente por serem judias. Muitas passaram a esconder símbolos religiosos, como a Estrela de David. Outras chegam a mudar seus nomes em aplicativos de transporte para que soem “menos judeus”. Quando uma comunidade precisa se esconder para sobreviver, algo está profundamente errado.
É preciso ser absolutamente claro: criticar o governo Netanyahu é legítimo e necessário. Denunciar as atrocidades cometidas em Gaza é urgente. Defender os direitos humanos do povo palestino não é uma obrigação ideológica, mas moral. Ainda assim, nada disso, absolutamente nada, pode servir de pretexto para ataques contra judeus, sinagogas, escolas ou pessoas que não têm qualquer responsabilidade pelas decisões de um governo. Fazer essa associação é tão absurdo quanto responsabilizar brasileiros comuns por decisões tomadas por Lula ou Bolsonaro.
O próprio termo antissemitismo ajuda a desmontar essa confusão deliberada. Criado no final do século XIX pelo ideólogo alemão Wilhelm Marr, o conceito não surgiu como uma crítica política ou religiosa, mas como uma teoria racial de ódio dirigida especificamente aos judeus. Desde suar origem, o antissemitismo não se refere a políticas de Estado, mas à desumanização de um povo inteiro, transformado em bode expiatório, inimigo interno ou ameaça existencial.
Da mesma forma, condenar os crimes cometidos em 7 de outubro de 2023 e os ataques contra civis israelenses não exclui, nem enfraquece, a condenação da violência em Gaza. Direitos humanos não são seletivos, nem condicionais. Ou valem para todos, ou deixam de valer para qualquer um.
Normalizar crimes de ódio contra qualquer minoria, seja ela judaica, muçulmana, LGBTQIA+ ou qualquer outra, corrói o tecido democrático. O antissemitismo não é uma ameaça apenas aos judeus. É uma ameaça à sociedade como um todo. Ele fere os princípios mais básicos das democracias liberais, que se sustentam na dignidade humana, na pluralidade e no respeito às diferenças.
A pergunta que fica é incômoda, mas necessária: a sociedade não aprendeu nada com a história? Se o passado nos ensinou algo, é que o ódio, quando tolerado, nunca se limita ao seu alvo inicial. Combater o antissemitismo hoje não é apenas um dever moral com a comunidade judaica, é um compromisso com o futuro da democracia, dos direitos humanos e da própria humanidade.
(Transcrito do PÚBLICO-Brasil)
