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Não existe polarização no machismo

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Não existe polarização no machismo

“Você é um revolucionário reacionário! Critica tudo, quer mudar tudo pra não mudar nada!”, ironizou Fábio para Renato, cujo rosto exibiu durante alguns segundos o curto-circuito que as frases lhe causaram. A dúvida conceitual de Renato se dissipou quando percebeu uns sorrisinhos de algumas pessoas à mesa. Partiu pra cima de Fábio: “Você é um esquerdinha festiva do caraleo, se acha, ainda pede dinheiro pro seus pais pra sobreviver?”. Aí o tempo fechou porque Fábio se doeu e levantou e sobraram empurrões e deixa-disso-gente. De longe, um garçom disse pro outro: “Se ninguém separa, não tem briga, porque é tudo cachorro que não morde”.

O conflito acalmou e Renato foi embora sem pagar a conta. Nem pra falar “depois me passa o valor que eu faço um pix”. Na mesa, então, sobraram o silêncio constrangedor de Fábio e as frases sensatas: “até quando essa polarização vai durar”, “a gente tem que saber respeitar as diferenças”, “é por isso que eu nunca discuto política”, “ninguém discute os verdadeiros problemas do Brasil”. Quando alguém disse: “Bolsonaro está preso, é preciso virar a página”, outro já levantou a voz: “mas foi um processo viciado, o STF persegue Bolsonaro”.

A discussão ameaçava recomeçar quando Fábio se levantou e disse para sua prima Clara; “meu date chegou”, “Quem?”, “Aquela de camisa jeans”, “Gata, boa sorte”. Fábio se despediu, mas ninguém respondeu porque a discussão política já assaltava as veias das gargantas.

Para Fábio era um encontro que despertava duas primeiras vezes. Era a primeira vez que não estava desesperadamente ansioso; era a primeira vez que saia com uma mulher negra. Ele achava que ela era morena, mas Cláudia falou com tanta convicção de sua negritude que convenceu-o. Conheceu Cláudia na despedida de uma amiga que resolveu mudar para a Espanha. Cláudia trabalhava em uma editora, tentava emplacar seu livro didático sobre racismo em alguma licitação e contou todos os esquemas de favorecimento e corrupção pelo país. “As prefeituras recebem os livros do governo federal e mesmo assim compram títulos com conteúdos similares, muitas vezes obras que nem tem a aprovação do MEC, em uma licitação dirigida e sem a menor necessidade”, denunciou durante a festa.

A briga ainda habitava o peito de Fábio. Não ia com a cara de Renato, mas por que tretar com ele se há uns 10 anos não se viam? Fábio deu um beijo no rosto de Cláudia e olhou profundamente em seus olhos. Sentaram-se, chamou o garçom e perguntou o que ela queria beber. Ela decidiu por uma cerveja e perguntou se Fábio tinha fome, que assentiu. “Pode ser uma pizza aperitivo? Escolhe o recheio”, Fábio apostou na Marguerita, que não tem erro. O garçom retirou os cardápios, olhou para Fábio e não se aguentou: “Trago a cerveja já. Tenho certeza que agora não vai ter discussão, né?”

Vendo pontos de interrogação dançarem no rosto de Cláudia, Fábio revisitou o conflito. ”Revolucionário reacionário? Que merda é essa! São uns ressentidos isso sim, só porque perderam um pouquinho da realeza, se sentem ameaçados, injustiçados, justamente os mais privilegiados”, “É bem por aí, pra eles bom era o tempo em que podia ser racista e machista e ninguém falava nada”, “E a gente vivia em uma democracia racial”. Riram.

A conversa caminhava bem enquanto Cláudia lembrava das suas primeiras impressões sobre Fábio e porque decidiu dar mais uma chance para um homem branco que vivia como classe média. Sentiu que ele tinha uma atração por ela que se afastava de uma sexualidade clichê. Tampouco exalava aquela ansiedade infantil da conquista. Pareceu equilibrado. Quem se esforçava para se equilibrar era ela. Depois da violência tóxica da última relação, estava há meses se dedicando ao trabalho como se fugisse de si mesma, tentando encontrar uma mulher que caminha em terra firme.

Foi depois da terceira cerveja que os alertas começaram a soar no cérebro de Cláudia. Renato começou a interrompê-la seguidamente. Fez uma breve dissertação sobre a solidão da mulher negra. Quando foi ao banheiro, disse que mijaria em pé, “mas em casa só mijava sentado”. Quando soltou um “não sou hétero, estou hétero”, Cláudia não teve dúvida. Tratava-se de um esquerdomacho se exibindo para si mesmo, conversando não com o ela, mas com seu espelho.

Cláudia olhou para a entrada do bar e se assustou. Viu seu ex-namorado tóxico andando em sua direção. Tinha raiva nos olhos. Fábio viu quem voltou e se levantou. Era Renato, o revolucionário reacionário.

 

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