MAIS

    O bom umbiguismo (por Miguel Esteves Cardoso)

    Por

    Não sei quanto tempo falta para sermos invadidos pelos hesicastas, mas já não deve ser muito.

    Os hesicastas, que apareceram nos anos 40 do século XIV, eram uns eremitas Ortodoxos que queriam, acima de tudo, que não os chateassem.

    Queriam concentrar-se na adoração pensativa de Deus e tudo faziam para não se distraírem. Uma das técnicas era dizer repetidamente uma oração enquanto se olhava para o próprio umbigo. Eis a oração em toda a sua simplicidade: “Senhor Jesus Cristo, filho de Deus, tende piedade de mim, pecador”.

    Não me digam que faltam ocasiões em que não viesse mesmo a calhar.

    Quando se fala em umbiguistas é dos hesicastas que se deveria falar. A técnica de fixar o umbigo era apenas uma de muitas, mas funciona: o tédio limpa a cabeça, deixando-a em condições perfeitas para a contemplação religiosa.

    Há mais de seis séculos que as pessoas se riem dos hesicastas — começaram mal eles apareceram — mas não é preciso visitar o Monte Atos para compreender que tinham uma certa razão. Os hesicastas queriam silêncio. E tempo. E nada para fazer. Para poder passar o tempo todo a fazer o que consideravam ser a coisa mais importante de todas.

    No caso deles, era rezar. Mas poderia ser filosofar, ou pintar, ou escrever, ou contemplar a natureza.

    O hesicasmo, com algumas pequenas modificações, é uma resposta atraente à dispersão da vida moderna: é o contrário do multitasking. Resolve o balão do narcisismo através do balão da divindade: Deus é por definição superior ao contemplador, por muito fantástico que este seja. É uma versão altruísta dos Hikikomori.

    O umbiguismo moderno admira o umbigo. O clássico — o hesicasta — usa o umbigo porque é aborrecido, porque é fácil deixar de vê-lo para poder ver outras coisas, melhores.

    Quem não gosta de um bocadinho de quietude, de um bocadinho de paz, e de ter um cantinho calado onde esses bocadinhos se possam gozar, durante o tempo que aprouver? O hesicasmo moderno e secular pode nos salvar a todos.

     

    (Transcrito do PÚBLICO)