A nova Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos, divulgada no início de dezembro, reposicionou a América Latina no centro da política externa americana e impôs desafios relevantes à diplomacia brasileira. Sob governo Donald Trump, Washington passou a tratar o Hemisfério Ocidental como prioridade absoluta, rompendo com a lógica predominante no pós-Guerra Fria, em que outras regiões como o Oriente Médio e a Ásia-Pacífico concentravam maior atenção estratégica A Europa, antes principal parceiro americano, também perdeu relevância. A mudança redefine hierarquias, alianças e zonas de influência, com impactos diretos sobre o Brasil.
O documento divide os países do hemisfério em três grandes categorias. No primeiro grupo estão os países “preferenciais”, governados por lideranças “amplamente alinhadas aos princípios e à estratégia” dos Estados Unidos, com os quais haveria grande espaço para cooperação política, econômica e de segurança. No segundo, figuram os países considerados ameaças diretas aos interesses americanos. Por fim, há um terceiro bloco, formado por governos com “perspectivas diferentes”, mas que compartilham interesses objetivos com Washington e demonstram disposição para trabalhar em conjunto.
Na prática, a classificação não deixa margem para grandes ambiguidades. O grupo dos aliados preferenciais reúne, majoritariamente, governos de direita ou ultradireita na América Latina. A Argentina de Javier Milei aparece como principal referência desse campo, agora acompanhada pelo Chile, após a vitória de José Antonio Kast. A esse eixo somam-se países como Paraguai, Equador, Bolívia, El Salvador, República Dominicana e outras nações do Caribe, que passaram a ser vistas como parceiros naturais da nova estratégia americana por afinidades ideológicas.
Esse rearranjo regional ocorre em um contexto bastante distinto daquele enfrentado pelo Brasil nos dois primeiros mandatos de Lula. À época, a chamada “onda rosa” havia levado governos de esquerda ao poder em grande parte da América do Sul, criando um ambiente favorável para Lula tentasse montar uma coordenação política regional que assumisse posições comuns frente aos Estados Unidos. Hoje, o cenário é outro.
Se o rol de países amigos é relativamente claro, também não é difícil identificar aqueles que Donald Trump considera inimigos. A Venezuela de Nicolás Maduro ocupa posição central nesse grupo. É em torno desse conflito que se concentra o maior risco de desestabilização regional, diante da possibilidade concreta de uma ação militar americana contra Caracas. Para o Brasil, o cenário é particularmente sensível. A extensa fronteira compartilhada com a Venezuela faria com que qualquer escalada militar tivesse impactos diretos sobre o território brasileiro, além de comprometer um dos pilares históricos da diplomacia nacional: a preservação da América do Sul como Zona de Paz.
Vale lembrar que o último conflito armado entre países sul-americanos ocorreu há três décadas. Em 1995, Peru e Equador protagonizaram a chamada Guerra do Cenepa, rapidamente encerrada graças à mediação de Brasil, Argentina, Chile e Estados Unidos. Desde então, o continente tem se mantido livre de guerras interestatais. O desafio atual, no entanto, é encontrar mediadores com estatura política suficiente para conter a escalada bélica iniciada por Trump no Caribe. Ainda que o Brasil seja, em tese, o único país com credenciais para dialogar com ambas as partes, sua capacidade de mediação é limitada tanto pela obstinação do presidente americano quanto pela falta de confiabilidade do regime de Maduro.
O histórico recente reforça essa desconfiança. No Acordo de Barbados, a Venezuela comprometeu-se a realizar eleições livres e competitivas, compromisso abandonado logo em seguida, com fraudes eleitorais amplamente denunciadas pela comunidade internacional. Esse comportamento fragiliza qualquer tentativa de negociação duradoura e reduz o espaço de atuação diplomática de outros países.
Resta, então, analisar o terceiro grupo identificado pela Estratégia de Segurança Nacional americana: os países que, apesar de divergências ideológicas com Washington, são vistos como potenciais “campeões regionais”, capazes de contribuir para a estabilidade não apenas dentro de suas fronteiras, mas em toda a região. Nesse grupo, dois países governados pela esquerda se destacam: México e Brasil.
No caso mexicano, a margem de manobra é estreita. A extensa fronteira com os Estados Unidos e a profunda integração, que para muitos é de dependência, de sua economia em relação à americana colocam o país em posição de limitada autonomia estratégica. A presidente Claudia Sheinbaum tem demonstrado habilidade política ao evitar confrontos diretos com Trump, optando por concessões táticas para impedir danos maiores. Não por acaso, o México chegou a adotar medidas semelhantes às do governo americano, como a imposição de tarifas de até 50% sobre importações, penalizando países como China e Brasil.
O Brasil, por sua vez, encontra-se em situação relativamente mais favorável. Menos dependente dos Estados Unidos e com uma pauta comercial mais diversificada, o país dispõe de maior espaço para se afirmar como ator regional relevante dentro da lógica imaginada pela nova estratégia americana. Trata-se, contudo, de uma faixa estreita de manobra, que exige pragmatismo e cautela, marcas tradicionais da diplomacia brasileira e que têm orientado a atuação do governo desde o início do tarifaço imposto por Trump.
O contencioso comercial e político decorrente dessa nova conjuntura empurrou o governo Lula para uma postura mais pragmática, com o abandono de bandeiras que funcionavam mais como retórica de mobilização do que como propostas exequíveis de inserção internacional. Desapareceram do discurso oficial ideias como a substituição do dólar nas transações comerciais globais ou a apresentação dos Brics como eixo central da geopolítica brasileira. A realidade impôs seus limites.
Governos, por mais ideológicos que sejam, acabam submetidos aos interesses nacionais quando confrontados com desafios concretos. Não é diferente com o governo Trump. Diante da ascensão chinesa e do questionamento crescente à hegemonia americana, é do interesse dos Estados Unidos normalizar e aprofundar relações com países estratégicos como o Brasil. Nesse contexto, a suspensão das sanções aplicadas com base na Lei Magnistiky contra o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes não pode ser dissociada da reclassificação do Brasil como parceiro estratégico em potencial, apesar das divergências ideológicas entre os governos.
A tradição das relações bilaterais entre Brasil e Estados Unidos sustenta essa aproximação pragmática. Ainda que o chamado “corolário Trump” da Doutrina Monroe levante preocupações legítimas sobre soberania e possa gerar instabilidade regional, ele não elimina a existência de espaço para a diplomacia e para os negócios. Washington tem interesse direto no acesso às reservas brasileiras de terras raras e minerais críticos, essenciais para a transição energética e para setores estratégicos da indústria de defesa e tecnologia.
Há, portanto, a possibilidade de o Brasil se beneficiar dessa demanda sem abrir mão de sua soberania, utilizando a rivalidade entre americanos e chineses a seu favor. A história oferece precedentes eloquentes. Durante a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos consideravam o litoral nordestino brasileiro estratégico para sua defesa, devido à proximidade com a África. Getúlio Vargas e o chanceler Oswaldo Aranha negociaram a instalação de bases militares americanas em troca do financiamento da indústria siderúrgica nacional, um passo decisivo para a industrialização do país.
Outro exemplo vem do período da ditadura militar. Apesar das profundas divergências internas entre governo e oposição, houve consenso em torno de uma política externa baseada no chamado pragmatismo responsável. Foi essa orientação que levou o Brasil a ser o primeiro país a reconhecer a independência das ex-colônias portuguesas na África, ampliando sua projeção internacional e sua autonomia diplomática.
Hoje, o canal para esse pragmatismo é mais estreito, cercado por tensões ideológicas e disputas geopolíticas de grande escala. Ainda assim, ele existe. Em um mundo marcado por rivalidades entre grandes potências e pela revalorização das áreas de influência, a política externa volta a ser um terreno no qual interesses nacionais, realismo e capacidade de negociação fazem a diferença. Para o Brasil, navegar nesse cenário complexo não é apenas uma opção: é uma necessidade.
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Hubert Alquéres é presidente da Academia Paulista de Educação.
