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    O decote de Brigitte Bardot abre para o mundo

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    Brigitte Bardot. Eu a descobri quando tinha sete anos. Ela estava na capa de Os anos 60 — A década que mudou tudo, suplemento da revista Veja, fundada havia um ano, e na qual eu viria a trabalhar durante a maior parte da minha carreira profissional.

    A foto de Brigitte Bardot teria influenciado a minha vida?

    A capa era uma colagem com imagens dos principais personagens dos anos 60, e ela estava lá, loiríssima, em uma blusa vermelha com um decote mais do que generoso, perdulário, na visão do paraíso, separado apenas por um istmo de tecido da sua continuação: a barriguinha de fora de BB.

    O gaiato do autor da colagem colocou o monumento francês atrás do papa Paulo VI, a sobrepujá-lo no contraste, e ao lado de John Kennedy. Mulherengo quando isso ainda era uma qualidade masculina, o presidente americano aparecia de perfil, como se estivesse admirando a paisagem proporcionada pelo decote.

    A única vez que consegui prestar atenção na atuação de BB foi no filme O Desprezo, em que ela faz par — atormentado — com Michel Piccoli. A protagonista desama o marido, roteirista de cinema, porque acha que ele a ofereceu, em troca de trabalho, a um diretor que a desejava.

    Baseado no livro homônimo de um dos meus escritores preferidos, o romano Alberto Moravia, é um dos poucos filmes inteligíveis do suíço Jean-Luc Godard, sempre deixando claro que a inteligibilidade por si só não é necessariamente uma qualidade, assim como a falta dela não é forçosamente um defeito.

    Entre BB e Sophia Loren, eu escolhia a francesa; entre BB e Claudia Cardinale, eu ficava com a italiana. Antes de entrarmos na era das influenciadores de redes sociais, as opções para os meninos eram infinitamente melhores.

    Nenhuma beldade, porém, superou Brigitte Bardot na relevância sociocultural, e é por isso que ela estava na capa do suplemento sobre os anos 60. Tornou-se símbolo da liberdade feminina, sem nunca ter sido militante de movimento feminista.

    BB não se vestia conforme a moda, mas criava moda. Passou o rodo na oferta masculina. Falava o que pensava, e o que pensava nem sempre estava de acordo com as normas. Ao ficar grávida contra a sua vontade, não escondeu a depressão, entregou o filho para o pai criar e sempre foi brutalmente sincera sobre a falta do instinto materno que parecia ser obrigatório para as mulheres.

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    Um dos seus grandes amores foi o cantor e compositor Serge Gainsbourg, o feio mais sedutor que já existiu, ela casada com um milionário alemão bonitão, Gunter Sachs. Também cantora, BB pediu a Gainsbourg a mais bela canção de amor jamais composta.

    Ele lhe deu Je t’aime… Moi non plus, uma transa musicada, pontuada de gemidos orgásticos, que ela gravou em 1967, junto com Gainsbourg, mas cujo lançamento vetou. O maridão achou que aquilo era demais. Felizmente, como ninguém entendia bulhufas de francês no Brasil (ainda é assim), virou música de bailinho de adolescentes por aqui. Era a nossa “lenta” favorita por motivos gritantemente óbvios.

    A frase que é título e refrão, “te amo… eu também não”, é de uma genialidade quase absoluta, porque emprestada de Salvador Dalí. Ao se referir a Picasso, ele gostava de dizer: “Picasso é espanhol, eu também sou; Picasso é pintor, eu também sou; Picasso é comunista, eu também não”.

    Gainsbourg acabou gravando a canção com a inglesa Jane Birkin, aquela que inspirou a bolsa feia da Hermès que as mulheres continuam a achar linda e que hoje atinge preços vorcarianos. Birkin se tornaria mulher de Gainsbourg (o sujeito era bom mesmo). Tudo acabou à francesa, sem ressentimentos de parte a parte. Em 1986, BB autorizou o lançamento da versão de Je t’aime… Moi non plus gravada por ela. Eu alternaria com a versão cantada por Birkin, facilmente.

    Os holofotes foram úteis a Bardot, nunca prazerosos, e na sua busca pela simplicidade do pé descalço, ela faria com que duas vilas de pescadores, Saint-Tropez e Búzios, se tornassem destinos turísticos de massa. BB terminou a vida reclamando do assédio de turistas em Saint-Tropez, onde a sua propriedade, La Mandrague, é ponto de atração.

    A melhor definição de Bardot foi dada pelo escritor e diretor Jean Cocteau. Ele era ótimo nesse negócio de definir mulher bonita. É da lavra dele a frase segundo a qual a atriz americana Ava Gardner era “o mais belo animal da Terra”. Em relação à compatriota, Cocteau disse que BB “vive como todo mundo, mas não se parece com ninguém”.

    Em 1973, abandonou o cinema e a fatuidade para se dedicar à luta em defesa dos animais, causa que havia antecipado bem jovem ao denunciar a crueldade perpetrada nos abatedouros.

    A sua primeira grande vitória foi obtida ainda na época em que era atriz: em 1964, o governo francês obrigou que os abatedouros atordoassem medicamente os animais antes de matá-los, dez anos antes de a providência virar regra na Europa. A segunda vitória, já como ativista em tempo integral, foi a proibição da importação de peles de focas bebês pela França.

    Símbolo da liberdade feminina, BB era uma conservadora no plano político. Considerava que a França havia começado a acabar em Maio de 1968. Simpatizante do Rassemblement National, de Marine Le Pen, o seu último marido, Bernard d’Ormale, foi colaborador de Jean-Marie Le Pen, criador do Front National, que deu origem ao atual partido da direita radical francesa.

    Ela foi multada cinco vezes por falas racistas, principalmente contra a imigração muçulmana. De fato, era uma senhora sem papas na língua ao expressar as suas convicções, seja em entrevistas ou nas autobiografias, mas o que ela representou como símbolo para as mulheres e a luta pela causa animal deveriam bastar para ofuscar as suas palavras.

    Nada basta para a esquerda, é claro. Sempre muito compreensivos em relação a stalinistas, os seus militantes tentaram empanar-lhe a reputação. Vamos deixar combiné: o simples fato de Bardot se alinhar à direita já seria pecado mortal.

    “A espécie humana é arrogante e sanguinária”, disse BB, em entrevista ao jornal Le Monde, em 2018. É uma entrevista excepcional, chapeau. Em certo momento, ao resumir a sua ojeriza ao universo das celebridades, do qual era estrela de primeiríssima grandeza, ela cita Madame de Staël: “A glória é o lamento deslumbrante da felicidade”.

    Na entrevista, ela conta sobre a sua amizade, insuspeita, com a escritora Marguerite Yourcenar. Não poderia haver personagem mais antípoda a Bardot do que Yourcenar, autora do cerebral Memórias de Adriano — e, no entanto, ambas tinham afinidades eletivas, como a defesa dos animais.

    Em 1968, anos antes de BB começar a empreender o seu bom combate pela focas bebês, a escritora lhe enviou uma carta, pedindo para que ela defendesse essa causa.

    Disse Bardot ao Monde:

    Eu não sabia disso. A carta dela, datada de 24 de fevereiro de 1968, nunca chegou até mim! Incrível, não é? Ele até pensou que demorei para reagir! Mas tenho uma história maravilhosa com Marguerite Yourcenar. Quando ela foi eleita para a Academia Francesa, em 1980, perguntaram-lhe quem gostaria de conhecer.

    “Brigitte Bardot”, ela respondeu. Recebi, então, um telefonema: “Marguerite Yourcenar gostaria de vê-la”. Eu não a conhecia, pensei que fosse mais um daqueles eventos sociais bobos que eu deveria evitar e recusei o convite. 

    Tempos depois, em uma noite tempestuosa, eu voltava para casa, coberta de lama, cercada pelos meus cachorros, e minha caseira me ligou: “Há uma senhora no portão que gostaria de vê-la”. Uma visita? Naquela chuva e à noite? Quem é? Ela disse: “Sra. Yourcenar”. 

    Bem, nós nos divertimos muito! Deixei-a entrar, tão encharcada e enlameada quanto eu, e nos aquecemos em frente a uma bela lareira, com uma taça de champanhe. E conversamos, conversamos e conversamos, como se nos conhecêssemos há anos.

    Nós nos correspondemos até o final da vida dela. Ela me disse que me enviaria livros, especificando: “Alguns são bem chatos! Mas vou escolher alguns encantadores que você entenderá muito bem. Acima de tudo, não leia Memórias de Adriano. É muito complicado, você não vai gostar”. É verdade, coisas muitos intelectuais me entediavam, e ela aceitava isso sem problemas. Ela me enviou O Tempo, esse Grande Escultor. Soberbo.

    Brigitte Bardot. Eu a descobri quanto tinha sete anos e continuei a descobri-la até o dia da sua morte. O decote de BB abre para o mundo.