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    O grande acordo (por João Bosco Rabello)

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    Em que pesem as repercussões negativas — muitas delas legítimas —, as negociações que levaram à aprovação, pelo Senado, do projeto de lei da dosimetria restrito ao 8 de janeiro, representam um hiato surpreendente em um longo período no qual a violência substituiu a política.

    A saída consumada talvez nos coloque diante de um episódio clássico de realpolitik — expressão alemã que se traduz por pragmatismo absoluto, ou pela política como ela é, quando falta oxigênio para decisões dentro do padrão formal de funcionamento das instituições.

    É precisamente esse cenário que já se instalara. A crise entre os Poderes alcançara um estágio em que a prevalência do extremismo criara um ambiente de guerra autofágica, cujo saldo seria negativo para todos os envolvidos.

    É nesses momentos que os movimentos se tornam menos visíveis, os bastidores passam a operar com intensidade e cessam as declarações aleatórias.

    Nesse contexto, vale recapitular os movimentos e falas mais recentes — uma espécie de senha em que atores veteranos cumpriram seus papéis em um roteiro de costura tão rápida quanto cirúrgica.

    Coube ao presidente da CCJ, senador Otto Alencar, o diagnóstico sobre o projeto vindo da Câmara: “Não me consultaram, é inaceitável”. Ao presidente do Senado, Davi Alcolumbre — em conflito aberto com o presidente Lula e que mantém boa relação com Otto —, o aviso direto: “Não haverá adiamento”, como desejava a base governista.

    Ao senador Esperidião Amin, relator da matéria na CCJ, coube restringir o alcance do texto aos condenados pelos atos de 8 de janeiro, abortando a má-fé de setores da Câmara que haviam produzido uma versão estendida ao crime organizado.

    São os mesmos setores que tentaram barrar investigações da Polícia Federal sobre parlamentares — não por acaso, quando operações de inteligência integradas passaram a revelar digitais e vínculos entre o crime organizado, o mercado financeiro e o Congresso Nacional.

    Essas conexões se materializaram, principalmente, nas operações Carbono Oculto (Faria Lima), Banco Master e no esquema de desvio envolvendo aposentados do INSS.

    Ao presidente Lula coube não orientar a obstrução da votação da dosimetria — por sabê-la inevitável —, mas atribuir-lhe um preço: a governança até 2026.

    Em outras palavras, garantir a aprovação de medidas econômicas, entre elas a reoneração das folhas de pagamento de setores da economia que desfrutam de isenções há anos, ampliadas após a pandemia.

    Só nesse movimento o ministro Fernando Haddad obteve cerca de R$ 22 bilhões para sustentar o arcabouço fiscal.

    O pragmatismo do presidente tem cálculo e limites:

    – não incluiu orientação para que sua base votasse a favor do projeto (seria inútil e politicamente letal);

    – anunciou o veto antecipado, sabendo que o Senado o derrubará e ficará com a exclusividade do ônus;

    – sua base votou contra e já acionou o STF questionando a constitucionalidade da medida;

    – reduziu a temperatura política com discursos de agradecimento ao Congresso, resgatando Hugo Motta e Alcolumbre e declarando-os aliados nas matérias fundamentais ao governo.

    O STF, por sua vez, segundo informações não desmentidas, integrou o movimento nos bastidores, onde ocorreram conversas entre os condutores políticos do acordo e ministros como Gilmar Mendes e até Alexandre de Moraes.

    Registre-se, aqui, que Gilmar recuou da decisão de restringir ao procurador-geral da República a prerrogativa de impeachment contra ministros da Suprema Corte — gesto que ajuda a datar o início desse grande acordo.

    O cenário macro indica que todos — à exceção do extremismo bolsonarista — saem ganhando, sem prejuízo do essencial: a punição da cúpula do golpe, que cumprirá pena, ainda que por tempo reduzido, em regime fechado.

    Não se perdeu o principal: pela primeira vez na história, os mentores de um golpe de Estado, incluindo militares das mais altas patentes, foram condenados e já cumprem suas sentenças de prisão.

    Na sequência, Lula ajustou o tom com as Forças Armadas em um evento de confraternização de fim de ano, quando agradeceu a lealdade à democracia e sinalizou apoio à estruturação permanente das instituições militares.

    O presidente ganha oxigênio para o último ano de mandato, nos planos fiscal e financeiro, e preserva as condições para a continuidade de bons indicadores econômicos que ainda precisam ampliar seu reconhecimento junto a parcela significativa da população.

    Sem essa continuidade, tais números estariam ameaçados em 2026 e, certamente, desidratariam a expressiva vantagem eleitoral apontada por todas as pesquisas, frente a quaisquer adversários.

    O centro e a direita civilizada ganham musculatura para impor uma candidatura fora da família Bolsonaro, ainda que o candidato ungido por Jair, seu filho Flávio, defina o projeto do Senado como “um primeiro degrau” — uma entre muitas bravatas usadas para minimizar derrotas sucessivas no esforço de dar continuidade ao golpe.

    Configura-se, assim, um clima de distensionamento ditado pelas conveniências políticas e as eleitorais de 2026 e imprimem-se os primeiros sinais de isolamento da extrema-direita.

    Trocou-se a guerra por um acordo que privilegia interesses essenciais — e, com isso, reduzem-se as estatísticas de mortos e feridos.

    Alguns sinais desse acordo são veementes. A ele se seguiram as cassações de Eduardo Bolsonaro e Alexandre Ramagem pela Mesa da Câmara, rompendo com a resistência às decisões do STF.

    Do mesmo modo, a reação do presidente da Câmara, Hugo Motta, à recente operação de busca e apreensão contra os deputados Sóstenes Cavalcanti e Carlos Jordy revela mudança de postura.

    “O STF está cumprindo seu papel de investigar e eu não tenho compromisso com erros”, disse Motta sobre as operações — declaração que evoca a canção de Chico Buarque, “Quem te viu, quem te vê”.

    Ainda não é possível afirmar que entre os efeitos dessa negociação esteja a redução da resistência ao nome indicado por Lula para o STF, Jorge Messias. Mas não é improvável.

    Da mesma forma, não se deve descartar que a dosimetria ajude na estabilização das relações entre os governos Lula e Trump, o que pode ser inferido pelas declarações do Secretário de Estado dos EUA, Marco Rúbio, nessa sexta (19) que considera os dois países em “trajetória positiva”.

    É claro que há mais elementos nesse contexto — a Venezuela é um deles —, mas o fato é que Lula ampliou as conversas com Trump, cujo teor permanece desconhecido.

    Há quem prefira, no campo da oposição, classificar o acordo como um armistício, sob a ótica de um prazo de validade limitado pela campanha eleitoral de 2026. Parece apenas uma tentativa de minimizar seu impacto.

    Na prática, resta acompanhar para ver se o imponderável não desfaz a costura.

    Mas, por ora, ela está feita.