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    Parecer do BC defende reviravolta em “guerra dos consignados” no MT

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    Quase 60% dos servidores públicos de Mato Grosso — o que corresponde a cerca de 62 mil pessoas — têm empréstimos, cartões de crédito ou de empréstimos consignados, com uma média de cinco contratos por funcionário. Desse total, 20 mil comprometeram mais de 35% da sua renda mensal com dívidas. Para 7,8 mil, esse endividamento chega a 70% do salário. Há casos em que o valor dos descontos representa 99% dos vencimentos.

    Esses dados, que mostram o alto nível de endividamento dos servidores, foram divulgados pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE-MT) e estão na base da “guerra dos consignados” em curso no Mato Grosso. O problema chegou a tal ponto que, no início de novembro, todos os contratos vinculados a esses serviços foram suspensos por 120 dias por um decreto legislativo, publicado pela Assembleia Legislativa do Mato Grosso em meio a denúncias de supostas irregularidades nesses serviços.

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    Ocorre que, na semana passada, o Banco Central (BC) emitiu um parecer no qual pede que as cobranças dos débitos dos empréstimos e dos cartões sejam retomadas. O BC alega que a medida adotada no Mato Grosso oferece “perigo de dano iminente à economia” do país.

    O parecer da procuradoria-geral do Banco Central foi dado numa Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) em análise no Supremo Tribunal Federal (STF), cujo relator é o ministro André Mendonça.

    O processo, que pede uma cautelar revertendo a suspensão da cobrança das dívidas, foi movido pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro (Consif), à qual a Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) é ligada. Sem sucesso, a Febraban já havia tentado derrubar o mesmo decreto legislativo no mês passado no Tribunal de Justiça do Mato Grosso (TJMT).

    Custo do crédito

    Para o BC, o decreto afronta a competência da União de legislar sobre matérias como a política de crédito. Diz ainda que cabe ao Legislativo estadual apenas celebrar os convênios com as instituições financeiras, “dispondo sobre a forma de gestão e operacionalização das consignações compulsórias e facultativas”.

    O Banco Central afirma ainda que a suspensão tem o “potencial de aumentar o valor das despesas das instituições financeiras com provisão para perdas, impactando negativamente o resultado” desses grupos. Com isso, alega o BC, a medida do Legislativo mato-grossense “pode desfigurar o programa (de consignados) de âmbito nacional” e “tem o potencial de afetar diretamente o SFN (Sistema Financeiro Nacional), podendo resultar em alterações na disponibilidade e no custo do crédito”.

    Dezenas de instituições financeiras atuam com consignados (empréstimos, cartões de crédito e cartões de benefícios) no Mato Grosso. De acordo com dados do TCE, entre maio de 2024 e abril de 2025, os repasses a essas empresas somaram R$ 1,7 bilhão. Além disso, o decreto legislativo também suspendeu a cobrança dos créditos diretos ao consumidor (CDC), que não é consignado, feitos pelo Banco do Brasil.

    Crise deflagrada

    As denúncias no Mato Grosso foram feitas por funcionários públicos, tanto da ativa como aposentados, ligados a seis sindicatos de áreas tão diversas quanto meio ambiente, educação e Polícia Civil. A mobilização também incluiu a Federação Sindical de Servidores Públicos de Mato Grosso. O caso resultou na abertura de um inquérito pela Polícia Federal (PF), a pedido Ministério Público Federal (MPF), além de uma ação civil pública, que corre em segredo de Justiça.

    As primeiras denúncias formalizadas pelos sindicalistas, representados pelo escritório de advocacia que tem entre os sócios o ex-governador mato-grossense Pedro Taques, surgiram entre março e abril deste ano e tinham como foco a Capital Consig, fintech com sede na zona leste de São Paulo, além de três empresas a ela ligadas: ClickBank, BemCartões e ABCCard.

    Cartões ligados ao consignado

    A Capital Consig foi acusada de cometer uma série de irregularidades na oferta de cartões de crédito e de cartões de benefícios, todos ligados a consignados, em muitos dos serviços prestados a cerca de 17 mil servidores públicos do Mato Grosso. A fintech, contudo, nega todos os pontos das acusações.

    A lista de denúncias começa por um suposto desvirtuamento na oferta do crédito. Segundo as acusações, os servidores imaginavam fazer um empréstimo consignado, mas, na realidade, estavam aderindo a um cartão de crédito. A principal diferença entre as duas modalidades, apontam os acusadores, é que, para um empréstimo, a taxa de juros seria de no máximo 2%. No caso do cartão, esse valor atingia entre 5% e até 8% ao mês.

    Divergência de valores

    A ação movida pelos servidores públicos na Justiça diz que a Capital Consig não “prestava qualquer serviço típico de uma operadora de cartões de crédito”. Isso quer dizer que “não fornecia um cartão físico, não mantinha uma rede de estabelecimentos credenciados, não processava operações de compras e não emitia faturas”.

    Além disso, cita a ação, os funcionários públicos pediam, mas não recebiam, os contratos de prestação do serviço. Em muitos casos, isso só ocorria por meio de ações movidas na Justiça. Quando conseguiam os documentos, as quantias recebidas (em geral, por meio de um Pix) não batiam com o valor lançado no documento e averbado na Secretaria de Planejamento e Gestão (Seplag) do MT como “total da dívida”. Ou seja, os funcionários públicos recebiam um valor, mas o débito indicado nos contratos era muito maior.

    Um levantamento feito pelos advogados dos servidores, com base em quase 70 contratos de cartão de crédito consignado, indicou que, nesses casos, a quantia liberada por Pix (às vezes, por TED ou DOC) para os funcionários públicos somou pouco mais de R$ 400 mil. Mas os dados registrados na Seplag – ou seja, o montante formal da dívida – atingia R$ 3,3 milhões.

    Dívida e saldo

    A Capital Consig afirma que pode explicar a diferença. Ela diz que as propostas feitas aos servidores eram para que o limite do cartão de crédito fosse usado para pagar uma dívida que eles já tinham com outras instituições financeiras. Além disso, eles teriam direito a receber um “troco”, um saldo a receber. Assim, segundo a fintech, o dinheiro enviado por Pix seria esse saldo. Mas o valor total do débito averbado incluía a dívida anterior, previamente quitada pela empresa.

    A fintech também contesta a versão de que os consumidores não sabiam que estavam aderindo a um cartão de crédito associado ao consignado. Ela alega que para autorizar tal operação, o funcionário público tem de entrar no portal do servidor, por meio de um login, e autorizar a concessão específica desse serviço.

    Sobre os contratos que não teriam sido mostrados aos consumidores, a empresa, por meio do advogado Renato Scardoa, reconhece que teve “alguns problemas” no início da operação que “não chegam a dezenas num universo de 31 mil contratos”. Em contrapartida, alega que a grande maioria dos entraves ocorreu porque a apresentação dos documentos não era solicitada pelos funcionários públicos, mas, sim, por sindicatos ou advogados que, supostamente, não tinham autorização para ter acesso aos dados.