O Ministério Público de São Paulo (MPSP) e a Polícia Civil conduzem, em frentes distintas, duas investigações que evidenciam fraudes em contratações da Prefeitura de Praia Grande, no litoral paulista. Embora independentes e sem investigados em comum, as apurações expõem fragilidades na gestão de licitações do município e estão conectadas ao ex-delegado Ruy Ferraz, executado a tiros no dia 15 de setembro.
Em relatório obtido pelo Metrópoles, o promotor de Justiça Marlon Machado Fernandes afirma haver indícios, ao menos desde 2011, da “prática de ato de improbidade administrativa consistente” resultante do “conluio entre empresas e agentes públicos, visando fraudar licitações no município de Praia Grande”.
A investigação civil, conduzida pela Promotoria do Litoral, tem como foco as empresas Fortex e Avante Litoral, acusadas de atuar de forma coordenada para manipular preços e simular concorrência em pregões de 2016 voltados à locação de máquinas para obras públicas. Paralelamente, a investigação criminal da Polícia Civil apura a execução do ex-delegado-geral e então secretário municipal da Administração, Ruy Ferraz Fontes.



Empresas ofereceram valores com diferença de R$ 1
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Ruy Ferraz Fontes, ex-delegado da Polícia Civil de São Paulo
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Delegado Ruy Ferraz Fontes
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Ruy Ferraz Fontes, ex-delegado da Polícia Civil de São Paulo
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Ruy Ferraz Fontes, ex-delegado da Polícia Civil de São Paulo
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Ruy Ferraz Fontes, ex-delegado da Polícia Civil de São Paulo
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Dias antes de ser assassinado, o ex-delegado redigia um rascunho de denúncia contendo nomes de servidores públicos que, segundo anotou, teriam envolvimento em irregularidades administrativas. O documento, encontrado no notebook dele pela perícia, seria encaminhado ao MPSP.
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No processo de improbidade, a Promotoria afirma que Fortex e Avante Litoral formaram um arranjo para manipular preços e dividir previamente itens de dois pregões realizados em 2016. A análise do MPSP demonstra que os responsáveis pelas empresas, Márcio Muszalska e Elaine Cristina Marques Domingues, foram sócios até 2014.
Dois anos depois, já administrando empresas distintas, apresentaram propostas com diferenças exatas e repetidas. No pregão para locação de máquinas e caminhões de pavimentação asfáltica, por exemplo, 11 dos 12 itens tiveram variação de apenas R$ 1 (veja galeria acima). Em outro pregão, voltado à locação de caminhão Munck, todos os itens tiveram diferença padronizada de R$ 0,60.
“Relação umbilical”
Para o promotor Rafael Veiga, a simetria de valores e a alternância de vencedores entre itens menores e maiores configuram “combinação prévia” e evidenciam uma espécie de “relação umbilical” entre os antigos sócios, mesmo após a separação formal. Nos autos, ele afirma que o alinhamento das propostas “viola o sigilo das ofertas e frustra o caráter competitivo da licitação”.
A Fortex venceu os itens mais lucrativos, recebendo R$ 3,47 milhões. A Avante Litoral ficou com itens menores e, em um dos certames, o contrato não chegou a ser executado. A Justiça reconheceu a extinção formal da Avante e determinou a inclusão de Elaine Domingues como sucessora processual, mantendo exigências de garantias financeiras. As empresas negam qualquer irregularidade e sustentam que a semelhança de preços decorre de “coincidência comercial”.
O processo também registra que o suposto conluio não seria um episódio isolado. Depoimentos e documentos analisados pelo MPSP mencionam a possível atuação articulada de outras empresas da região, formando um ambiente de disputa apenas aparente em licitações de locação de máquinas, ônibus e caminhões.
Embora a ação atual se concentre apenas na Fortex e na Avante Litoral, o MPSP indica que o padrão encontrado “não destoa” de comportamentos anteriores observados, reforçando a suspeita de que a prática possa ocorrer desde 2011.
“Havia algo errado”
Em outra frente, a Divisão Especial de Investigações Criminais (Deic) de Praia Grande apura a atividade de empresas e funcionários públicos mencionados por Ruy Ferraz Fontes no rascunho de denúncia interrompido pelo assassinato dele. A perícia do notebook revelou que ele pretendia comunicar o MPSP sobre a atuação de servidores supostamente envolvidos com fraudes em licitações.
Entre os nomes citados estavam servidores lotados em áreas estratégicas, como tecnologia da informação, compras e setores de apoio aos pregões. A companheira de Ruy relatou em depoimento que, nos dias que antecederam o assassinato, ele vinha demonstrando uma preocupação crescente com irregularidades que dizia ter encontrado na prefeitura.
Segundo ela, o marido parecia aflito com o que havia descoberto em processos de licitação e comentava que “havia algo errado” nas disputas públicas analisadas por ele. Contou, ainda, que o secretário estava mais tenso do que o habitual e que, embora tentasse poupá-la dos detalhes, deixava claro que pretendia levar as suspeitas ao MPSP assim que organizasse toda a documentação.
Contrato de R$ 14 milhões suspenso
Duas semanas antes de ser executado, o ex-delegado Ruy Ferraz suspendeu uma licitação que garantiria um contrato de R$ 14 milhões com a empresa de câmeras de monitoramento Peltier por conta de suspeitas de que o certame teria desclassificado, arbitrariamente, outras candidatas que apresentavam melhores ofertas.
A hipótese de que o homicídio de Ruy Ferraz tenha ligação com a atuação na pasta chegou a ser mencionada no relatório final do inquérito policial que apurou o caso. Mas não foi aprofundada. A investigação, segundo a polícia, segue em andamento.
A Polícia Civil representou pela quebra de sigilos bancário, telefônico e telemático dos servidores mencionados na denúncia inacabada de Ruy Ferraz, além de pedidos de busca e apreensão e rastreamento de dados de localização. São eles:
- Sandro Rogério Pardini – subsecretário de Gestão e Tecnologia da Secretaria de Planejamento (Seplan);
- Aline Souza Siqueira Bitencourt – diretora do Departamento de Integração da Informação, ligado à Seplan;
- Rodrigo Orlando – engenheiro de Telecomunicações e responsável formal pela análise técnica das licitações;
- Wellington Melo Mota – servidor municipal (cargo não especificado no inquérito);
- Ronaldo Muniz de Lima Souza – servidor municipal (cargo não especificado no inquérito).
Cível e criminal
As duas investigações avançam sem pontos de contato formais. No processo cível, os alvos são exclusivamente os empresários acusados de formarem um conluio, classificado pelo MPSP como cartel. No criminal, apenas servidores municipais são investigados, sem qualquer menção a Fortex ou Avante Litoral.
Ainda assim, ambos os casos transitam pelo mesmo corredor administrativo porque tratam de licitações conduzidas pela prefeitura e de suspeitas sobre a condução de contratos públicos.
Para as autoridades, o desafio é concluir cada investigação dentro da competência, esclarecendo, por um lado, se houve cartelização efetiva entre as empresas privadas e, por outro — como mostrou o Metrópoles — se a morte de Ruy teve alguma motivação ligada às rotinas administrativas que ele analisava.
Planejamento desde março
Em conversa com a reportagem, um dos promotores que assinam a denúncia contra os oito supostos responsáveis pela morte de Ruy Ferraz afirma que a hipótese de que o assassinato teria relação com fraudes em licitações na Praia Grande perdeu força quando a equipe de investigação descobriu que o crime começou a ser planejado em março deste ano, supostamente antes da descoberta do ex-delegado-geral sobre as irregularidades.
A ligação entre o mando do crime e o Primeiro Comando da Capital (PCC) teria sido estabelecida pela Promotoria a partir de um “salve” (ordenando a morte do ex-delegado) de 2019 e do suposto envolvimento de executores com a facção.
Apesar de apresentar uma denúncia “cravando” que a morte de Ferraz foi encomendada pelo PCC, os promotores não individualizaram a conduta de nenhum mandante. O documento se limita a apontar o envolvimento de investigados que teriam de alguma forma participado, seja cedendo casas usadas pelos criminosos, ou cujas digitais aparecem nos carros usados no crime. Não há especificação, por exemplo, sobre quem seriam os atiradores.
O que diz a Prefeitura
Questionada pelo Metrópoles, a Prefeitura de Praia Grande disse que a denúncia do MPSP já apontou que o crime teria sido cometido a mando do PCC e que a hipótese sobre a relação com a atuação de Ruy Ferraz na Secretaria da Administração teria sido descartada.
“A Prefeitura de Praia Grande destaca que o MPSP confirmou que o ex-delegado-geral Ruy Ferraz Fontes foi assassinado a mando do alto escalão do PCC como vingança. O anúncio ocorreu no último dia 21 de novembro”, disse a gestão municipal.
“Na oportunidade, o MPSP descartou a hipótese de uma relação da morte dele com a sua gestão como secretário de Administração municipal e denunciou oito pessoas pela execução do ex-delegado-geral. As denúncias foram baseadas no resultado final da primeira fase das investigações do caso realizadas pela Força-Tarefa criada pela Secretaria de Estado da Segurança”, acrescentou.
Questionado sobre medidas tomadas com servidores mencionados na denúncia do ex-delegado, a prefeitura não respondeu.
A reportagem não conseguiu contato com Sandro Rogério Pardini nem com demais servidores mencionados. O espaço segue aberto para manifestação.




