Rabelo não gosta de ser chamado de José nem de Ricardo. Diz que são nomes comuns demais, gastos pelo uso. Prefere Rabelo. É assim que se apresenta e é assim que pede para ser tratado. Segundo ele, o nome carrega uma identidade escolhida, não imposta.
Todas as informações a seguir foram relatadas por ele à reportagem.
Uma casa sem paredes
Rabelo vive em frente ao número 318 da rua da Consolação, no centro de São Paulo. O espaço onde dorme não tem paredes nem portas, mas ele o chama de “casa”, às vezes de “acampamento”. Entre os demais locais ocupados por pessoas em situação de rua, o dele se destaca, pela limpeza e organização.
Às 10h03 de sexta-feira (19/12), quando a reportagem chegou, ele organizava livros sob a marquise de um imóvel comercial fechado, onde antes funcionava um call center. Alinhou os volumes, varreu o entorno, recolheu a sujeira e a jogou em uma lixeira branca que mantém ao lado. Depois se sentou e ofereceu ao repórter uma almofada com a estampa de um cavalo e um potro (assista abaixo).
Cama, isopor e livros
Rabelo dorme sobre um colchonete fino, coberto por um lençol claro e limpo. A cabeceira é uma caixa de isopor, onde guarda roupas doadas. Ele costuma colocar imagens junto aos livros. No dia da entrevista, havia apenas uma. As outras — entre elas, um retrato de John Lennon — haviam sido levadas no dia anterior. “Um dos problemas de viver na rua”, disse.
Os livros, segundo ele, aparecem. São achados na rua. Alguns ficam expostos, outros escondidos, como um livro ilustrado de histórias maravilhosas, emprestado por um amigo, o qual retira do esconderijo para mostrar. “Esse eu guardo, porque preciso devolver.”
Quem observa
O jornaleiro Antônio Vieira, o Toninho, há cerca de 30 anos no ponto próximo, diz que Rabelo chegou ali em junho, dois meses depois do fechamento do imóvel comercial, em frente ao qual o vizinho em situação de rua dorme.
Descreve-o como discreto, quieto e gentil. Diz já tê-lo visto ajudar senhoras com sacolas algumas vezes. Para ele, Rabelo se diferencia pela limpeza, pela organização e pelo hábito de passar horas lendo.
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Rabelo organiza livros sob a marquise de um imóvel fechado na rua da Consolação, onde montou o espaço que chama de casa.
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O espaço muda de tempos em tempos, resultado de uma organização que ele associa à memória da mãe.
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A caixa de isopor funciona como cabeceira e guarda as roupas que recebe por doação.
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O colchonete fino, coberto por um lençol claro, marca o lugar onde ele dorme todas as noites no centro de São Paulo.
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Entre os livros expostos, alguns ficam à vista; outros são escondidos para não desaparecerem.
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Rabelo passa horas em silêncio, imerso na leitura, hábito observado por comerciantes da região.
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A caixa de isopor funciona como cabeceira e guarda as roupas que recebe por doação.
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Alfredo Henrique/Metrópoles
Origem e ruptura
Rabelo se identificou como José Ricardo Rabelo de Oliveira Marques, sem mostrar o documento. Disse que nasceu em São Luís do Maranhão. O pai era coronel da Polícia Militar e os irmãos seguiram carreira semelhante. A mãe morreu de câncer, há cerca de quatro anos e, o pai, dois anos depois, com Alzheimer.
Estando em São Paulo há cerca de dez anos, ele disse que a família “ainda é rica”. Contou também que, após a morte da mãe, ela deixou uma herança e pediu ao pai que lhe pagasse uma pensão mensal, de R$ 7 mil. Segundo ele, os irmãos bloquearam o pagamento e, há dois anos, garantiu não ter contato com a família.
A mãe e o nome
O entrevistado relatou que foi adotado pelo coronel da PM, segundo marido da mãe, de quem herdou o sobrenome Rabelo. Descreveu a família como matriarcal.
“Minha mãe que mandava. Da porta pra fora de casa, meu pai era coronel. Pra dentro, era ela.”
Ele afirmou que, assim como os nove irmãos, estudou em bons colégios. Aos 17 anos, quando a mãe quis colocá-lo na polícia, tatuou um cavalo no peito. Levou, segundo ele, o único tapa da vida. “Eu não queria ser policial”. Também teria iniciado faculdades de administração e psicologia, mas não concluiu, porque não gostava da sala de aula.
Viagens como modo de vida
Desde jovem, Rabelo queria conhecer outros lugares. A mãe pagava e ele ia. Viajou por todas as capitais do país, ficando um tempo em cada lugar, além de cidades menores em cada estado. Ele confessou não ter gostado de Cuiabá, nem de Manaus, por causa do calor. Passou ainda pelo Rio de Janeiro, antes de decidir ficar em São Paulo.
“No Brasil, não tem lugar como São Paulo. Aqui aceitam você como é.”
As viagens duraram dos 18 anos até 2015. Ao chegar à cidade, morou na Pompeia, perto do estádio do Palmeiras, e depois na região da Sé.
Disse que na ocasião era vaidoso e preconceituoso. “Eu olhava mais a arquitetura do que as pessoas [em situação de rua]. E nem imaginava …”, deixa de concluar a frase, apontando para si mesmo.
Da pensão à rua
Ir para a rua, segundo Rabelo, foi gradual. Sem a pensão, passou a conhecer pessoas que o orientaram sobre onde comer e se banhar. Ficou em albergues, mas não gostava do ambiente nem da vigilância e, por isso, preferiu a rua.
No início, foi para a Mooca, zona leste paulistana, onde imitava outros moradores. Com uma mochila e boas roupas, aos poucos, foi se desfazendo de tudo, por orientação das outras pessoas em situação de rua — para evitar tornar-se alvo de furtos e do interesse alheio.
Atualmente, disse que toma banho e joga fora a roupa usada, porque não tem onde lavá-la. Em dias quentes, se banha diariamente em uma bica na avenida 23 de Maio.
Nos últimos seis anos, a população de rua da capital quase triplicou, passando de 38.887, em 2018, para quase 100 mil — um aumento de 154%. Os números são do Observatório da População em Situação de Rua (ObpopRua), que se baseia em dado do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social.
Drogas e limites
Rabelo confessou não beber álcool, mas fumar cigarro e crack. Antes, usava maconha e cocaína. Há cerca de cinco anos, após abusar das duas últimas drogas, caiu e quebrou os dentes. “Depois disso, conheci o crack”, confidenciou, acrescentando que a droga “lhe dá coragem” para encarar situações delicadas, geralmente vivenciadas com outros sem-teto.
Ele trabalha com reciclagem para não pedir esmola e afirma nunca ter cometido nada ilícito. Com o dinheiro, compra comida simples — como biscoitos e refrigerantes — além de cigarro e crack.
Durante toda a entrevista Rabelo mostrou-se lúcido, com fala firme e organizada.
O centro como escolha
Ele disse conhecer São Paulo inteira e afirmou que o centro é o melhor lugar para viver. “Aqui tem tudo”. Fora dali, segundo ele, os moradores são mais hostis. “Aqui [centro] estão acostumados [com gente em situação de rua].”
Questionado se pretende sair da rua, disse que não faz planos. “Não sonho com isso. Se acontecer, tudo bem”. Afirmou ainda que não quer dar satisfações nem “ficar preso ao sistema”.
Arte, memória e silêncio
A configuração da morada temporária muda com frequência. Rabelo disse que não gosta de mesmice. Ele montou, recentemente, uma árvore de Natal, enfeitando uma árvore da Rua da Consolação com espuma de travesseiro e bolas natalinas, que encontrou descartadas na rua 25 de Março. A decoração já foi substituída por uma homenagem às mulheres negras. Para isso, colocou apliques de calelos afro na mesma árvore. “A arte surge assim”, explicou.
Sua veia artística era reconhecida pela mãe e, para preservar a memória dela viva, ele mantém tudo limpo e organizado. “Isso me faz bem”.
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Ele acrescentou que, durante suas viagens, teve quatro filhos e dois netos, até onde sabe. Disse ainda que uma das filhas tenta tirá-lo da rua, por temer pela segurança do pai, mas Rabelo prefere que ela não saiba onde está. Suas constantes mudanças de pontos de descanso, na capital, seriam um reflexo disso, aliado ao desgosto pela mesmice.
Sobre os riscos de não ter teto, os quais atormentam a filha, ele afirmou que o maior perigo são os próprios moradores de rua, alguns chamados de “ratos”, porque se esgueiram para furtar objetos.
Questionado se pensa na vida que tinha antes das ruas, Rabelo afirmou não pensar no passado, nem no futuro. “O meu hoje é aqui e agora”, vaticinou, enquanto permanecia sentado, com os livros alinhados e o chão varrido. Pelo menos naquele dia, aquela configuração de casa estava pronta.
