Maior intervenção já realizada na história do sistema financeiro brasileiro, a liquidação extrajudicial do Banco Master, decretada pelo Banco Central (BC) há cerca de duas semanas, não foi considerada uma surpresa pelos agentes de mercado, mas pegou muitos investidores desprevenidos. O banco foi alvo da Operação Compliance Zero, deflagrada pela Polícia Federal (PF), que investiga suposta fraude bilionária envolvendo carteiras de crédito negociadas pelo Master com o Banco de Brasília (BRB).
A analista contábil Sheila Duarte, de 39 anos, foi uma das 1,6 milhão de pessoas que aplicaram seu dinheiro no Certificado de Depósitos Bancários (CDB) do Master, com remuneração equivalente a 140% do CDI. Ao Metrópoles, ela contou que investiu R$ 98 mil no CDB do Master e outros R$ 30 mil no Will Bank – que pertence ao conglomerado do Master, mas está registrado sob a licença do Banco Master Múltiplo, que não foi liquidado pelo BC. O Master Múltiplo foi colocado no Regime de Administração Especial Temporária (Raet), instrumento que mantém as operações ativas enquanto a instituição é reestruturada.
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Como funciona o CDB
- O CDB é um tipo de investimento de renda fixa emitido por bancos. Ao investir em um CDB, a pessoa “empresta” dinheiro ao banco em troca de juros após um período determinado.
- O rendimento e a liquidez variam de acordo com o tipo de CDB escolhido, como os prefixados, que têm juros fixos, ou aqueles com liquidez diária, apontados como ideais para reservas de emergência.
- Já o CDI (Certificado de Depósito Interbancário) é um título de curto prazo negociado entre bancos que tem como referência a taxa DI, que acompanha de perto a taxa básica de juros da economia, a Selic, e é atualizada diariamente.
Ao todo, Sheila investiu R$ 128 mil no conglomerado e teve um ganho bruto de cerca de R$ 11 mil em oito meses. A analista contábil está coberta pelo Fundo Garantidor de Créditos (FGC), uma instituição privada, sem fins lucrativos, que atua como uma espécie de seguro, protegendo alguns tipos de investimentos e depósitos feitos em instituições financeiras. O fundo é formado a partir de recursos depositados periodicamente pelos bancos associados – entre os quais a Caixa Econômica Federal e bancos comerciais, de investimento e de desenvolvimento. Os bancos realizam depósitos que criam uma margem financeira de segurança da qual sairá o dinheiro para pagar clientes e investidores, caso a instituição financeira vá à falência.
Atualmente, o FGC tem cerca de 250 instituições associadas. Segundo dados do fundo, 99,6% dos clientes dessas instituições estão 100% cobertos pela garantia de R$ 250 mil. O FGC não cobre todas as modalidades de investimentos. Entre os itens protegidos, estão depósitos à vista, depósitos de poupança, Recibo de Depósitos Bancários (RDB), Letras de Crédito Imobiliário (LCI), Letras de Crédito do Agronegócio (LCA), Letras de Câmbio (LC), Letras Hipotecárias (LH) e o CDB escolhido por Sheila.
“Investi sob orientação de um profissional. Na verdade, eu o escolhi por ser da família e renomado no mercado. Desconfiei que pudesse não ser seguro pelo risco, que estava em 19 quando investi e depois aumentou para 50. Questionei e tive o retorno de que o produto estava assegurado pelo FGC. O assessor, inclusive, projetava os ganhos até a liquidação para que não passasse de R$ 250 mil”, relata Sheila. “Meu perfil de investimento é conservador, e um risco mais elevado me chamou atenção. No meu caso, jogamos com as regras do jogo literalmente, mas tenho certeza de que muitos assessores se aproveitaram da inocência dos clientes. As comissões sobre esses produtos devem ser excelentes, pois 100% dos meus CDBs indicados pelo meu assessor eram do conglomerado do Master.”
Ao Metrópoles, a analista contábil disse que teve “problema com uma assessora” financeira, o que a levou a trocar de profissional no momento em que pesquisava quais seriam os melhores tipos de investimento. Segundo Sheila, “é muito importante avaliar seu perfil de investidor em primeiro lugar” e “prudência é indispensável”.
“É necessário se informar sobre cada produto e não apenas seguir a orientação dos assessores. Essa assessora tentou me empurrar o pior produto existente, o chamado COE [Certificado de Operações Estruturadas, um produto financeiro que combina elementos de renda fixa e renda variável em um único investimento] e, após tomar essa rasteira, perdi totalmente a confiança e busquei uma pessoa da família. Mas sempre questiono tudo e sempre me informo”, afirma.
Negligência do mercado
Segundo economistas, analistas e agentes do mercado ouvidos pelo Metrópoles, o caso Master não foi propriamente uma surpresa. Quem acompanhava a trajetória do banco, com a captação desenfreada de recursos com base em remunerações muito elevadas, já esperava que, cedo ou tarde, houvesse alguma intervenção da autoridade monetária na instituição. A dúvida não era mais “se”, mas quando ela ocorreria.
“Não éramos apenas nós que sabíamos disso. Nos bastidores, muita gente falava sobre o Master. Ninguém conseguia explicar como a operação continuava daquele jeito”, afirma Tito Gusmão, CEO e sócio-fundador da Warren. A corretora, gestora e administradora de investimentos foi uma das primeiras a alertar publicamente sobre as desconfianças envolvendo o Banco Master e, pelo menos desde 2023, já não recomendava mais nenhum investimento em produtos do banco.
“Por outro lado, o mercado ganhou bastante dinheiro com isso. Algumas plataformas continuaram vendendo muito o Master. Cada oferta de Master representava uma comissão gorda para quem vendia e muita gente não se importava se era produto bom ou ruim”, diz Gusmão. “Talvez os reguladores e o conselho monetário tenham sido lentos, já que o mercado olhava para isso havia muito tempo. E agora estão atuando com o olho no retrovisor, depois de o problema ter acontecido.”
Como mostrou o Metrópoles, apenas três corretoras distribuíram R$ 36 bilhões dos R$ 41 bilhões de CDBs do Master alcançados pelo FGC: Nubank, BTG e XP Investimentos. Além do retorno acima do mercado, o Master era conhecido por oferecer altas comissões para as corretoras — fala-se de até 5% do dinheiro investido pelos clientes, mas, oficialmente, a taxa era de 2,5%.
André Galhardo, economista-chefe da Análise Econômica, tem a mesma avaliação sobre a demora do mercado para tomar uma atitude em relação ao Master. “Faltou atenção por parte de todo mundo. Se, há pelo menos dois anos, já tínhamos agentes do mercado financeiro dizendo que havia um movimento estranho dentro do Banco Master, talvez isso pudesse ter sido captado antes pelos técnicos do BC, que é uma instituição séria com pessoas capacitadas e instrumentos para fazer esse tipo de avaliação. Precisou esperar chegar ao ponto em que chegou?”, questiona.
“Não há dúvidas de que parte do mercado falhou. Houve leniência, sim, porque os sinais já existiam. E este é justamente o trabalho das corretoras e dos bancos. Identificar isso, para quem está dentro do segmento, deveria ser muito mais fácil e deveria ter sido feito”, aponta Galhardo.
Os especialistas consultados pelo Metrópoles foram unânimes ao descartar qualquer risco sistêmico ao funcionamento do mercado bancário e financeiro no país por causa da liquidação do Master. Deve haver, entretanto, um impacto considerável sobre o FGC. Segundo estimativas iniciais do fundo, o ressarcimento aos clientes para os depósitos e investimentos elegíveis à garantia do FGC soma cerca de R$ 41 bilhões. O Metrópoles apurou que esse montante pode, ao fim do processo, ultrapassar R$ 50 bilhões e até se aproximar de R$ 60 bilhões. No primeiro semestre deste ano, o FGC contava com cerca de R$ 120 bilhões em caixa.
“Dado o tamanho do Banco Master, não representa risco ao sistema bancário brasileiro, que é trilionário. O Master é bilionário e abaixo da faixa dos R$ 100 bilhões. Dá para cravar que o impacto efetivo desse episódio no sistema como um todo é zero. Agora, em relação ao FGC, é um impacto relevante. Como uma instituição desse porte consegue impactar perto de 50% do fundo? Isso deveria ter sido considerado pelas normas e regras como um fator a ser monitorado antes até mesmo de deixar um banco usar o FGC”, afirma Hugo Queiroz, sócio e diretor da L4 Capital.
“Como esses caras conseguiram entrar ali, nessa magnitude e proporção? É evidente que medidas limitadoras deveriam ter sido tomadas, alertas regulatórios deveriam ter sido feitos. Esses alertas até foram feitos, mas a maneira como isso ocorreu não foi eficaz. Tudo isso permitiu um impacto de grande magnitude no FGC. A saúde do fundo é a maior preocupação agora”, explica Queiroz.
Na mesma linha, André Galhardo afirma que o Master “usou o FGC, que é um fundo para emergências, como um instrumento de alavancagem”. “Quando o Master oferecia o CDB com retorno de 140% do CDI e colocava lá, em letras garrafais, que estava garantido pelo FGC, evidentemente não pode, não é correto. Houve o uso de um instrumento do sistema financeiro, da população brasileira, para alavancar as operações de um banco, com interesses particulares”, aponta.
Pânico entre os investidores
Além da ameaça ao FGC, outro efeito danoso da crise que levou à liquidação do Master é o clima de pânico que pode se espalhar entre quem aplica seu dinheiro em títulos bancários. “Por mais que não haja risco sistêmico, eventos como esse do Master trazem manchetes ruins. As pessoas leem sobre isso. Um episódio como esse traz um medo em relação ao mercado. E, quando traz medo, o que é o porto seguro? Os bancos maiores. As pessoas não imaginam que o Bradesco ou o Itaú vão morrer. É algo semelhante ao que ocorreu com a Americanas [em 2023, a varejista, hoje em recuperação judicial, informou ao mercado que havia detectado uma fraude bilionária em seus balanços corporativos]. Também não houve risco sistêmico, mas trouxe um medo generalizado”, compara Tito Gusmão, da Warren.
Hugo Queiroz afirma que o clima de preocupação dos investidores nas últimas semanas já é perceptível e “vem impactando a dinâmica do mercado como um todo”. “Toda vez que acontece alguma fraude ou um problema de grande porte no sistema financeiro, isso gera aversão ao risco. É algo que se manifesta na relutância em aceitar investimentos mais arriscados em troca de um retorno potencialmente maior. A percepção de risco do investidor é impactada, o que aumenta a exigência de retorno frente ao risco. Com isso, os bancos menores vão ter mais dificuldades para captar porque estarão sob um escrutínio maior por parte dos investidores”, projeta.
Depois de investir R$ 98 mil no CDB do Master e ver o banco ser liquidado, Sheila Duarte garante que não se sente apavorada, justamente por estar coberta pela garantia do FGC, mas defende um comportamento mais cauteloso por parte de quem investe. “Não me sinto insegura, mas é muito importante acompanhar o cenário econômico, as regras, verificar se algo irá mudar após esse evento. Meu perfil é conservador e prefiro investir em bancos mais sólidos, mesmo com retorno menor. A renda fixa está vantajosa no momento. Não há necessidade de se arriscar”, avalia.
A liquidação extrajudicial, que atingiu o Banco Master e poupou o Will Bank até agora, é o regime de resolução que se destina a interromper o funcionamento de uma instituição e promover sua retirada, de forma organizada, do Sistema Financeiro Nacional (SFN). Ela é adotada quando ocorre situação de insolvência irrecuperável ou quando são cometidas graves infrações às normas que regulam sua atividade. O BC nomeia um liquidante, que busca a venda dos ativos existentes para viabilizar o pagamento aos credores.
Segundo os analistas ouvidos pelo Metrópoles, antes de investir em bancos é necessário entender o funcionamento do mercado financeiro e do sistema bancário, além de se informar sobre o histórico e a credibilidade das instituições. “Tem muita educação financeira a ser feita. É necessário montar um planejamento, investir com disciplina todo mês, olhar isso para um período de cinco a dez anos. Mas este discurso muitas vezes é considerado chato, ultrapassado”, lamenta Gusmão. “O que é mais sexy? É o amigão lá do Twitter dizendo como ficar rico em uma semana. Alocar no Master, comprar ação da empresa fulana de tal para transformar R$ 100 em R$ 1 milhão. É o discurso mais atraente e mais fácil, mas não é o certo”, diz.
Em um cenário de tamanha apreensão, com os investidores mergulhados em um mar de dúvidas, Hugo Queiroz faz um alerta que acende a luz amarela no mercado. Segundo ele, é muito provável que ocorram outros casos semelhantes ao do Banco Master no futuro. “Vão acontecer outros casos nos próximos anos ou décadas, e o investidor precisa ter isso em mente. É do modelo de negócio de banco. Você toma um risco, capta o seu recurso, investe em algum ativo para ter lucro. O investidor precisa, primeiramente, entender o que é um banco. Não adianta você colocar toda a responsabilidade no FGC. Você tem de olhar aquele banco e saber o que ele faz para gerar o retorno”, explica.
